Luciana de Francesco/Divulgação

Escritor sem pais nem filhos

Literatura

17.01.17

Aos 40 anos Campos de Carvalho assassinou a lógica na literatura, invocando a legítima defesa de um pensamento anárquico e de uma fabulação sem limites. Pelo crime, foi condenado a um misterioso limbo. Não exatamente o ostracismo:  em A Lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel e O púcaro búlgaro, romances publicados dos 40 aos 48 anos, entre 1956 e 1964, delimita-se um território absurdo e incartografável no mapa da literatura brasileira do século 20. Em vida, Campos de Carvalho era pouco lido e criticado; autor atacado à direita e à esquerda, recusava ser o centro das atenções. Talvez sua grande ambição fosse ser um fracasso retumbante. Ignorado por público e academia, após esses quatro romances o autor ficou na miúda – fiel ao terno e à gravata, a um casamento discreto e ao trabalho burocrático como procurador do estado de São Paulo; e dos 50 aos 85 anos viveu invisível, sem publicar, dando lacônicas entrevistas.

Na poesia — mesmo em prosa — eu me vingo da minha frágil condição humana, tão rude e pesada, e posso ser profeta sem que me detenha a polícia ou me exterminem meus vizinhos da esquerda ou da direita, que não passam de pequenos burgueses. Graças à poesia posso mostrar-me nu em público, ridicularizar o ridículo (em mim, inclusive), tocar a fanfarra sem ser data nacional e fazer-me diabólico quando não acredito nem em Deus. Filtro-me através da poesia como uma água salobra e sem dignidade, cheia do lodo dos séculos e das algas impuras e despidas de mistério — eu que sou hipocampo. Faço da poesia o meu hino de revolta mas também de perdão, que entoo em pleno silêncio e sem nenhum coro estranho, a não ser o dos meus fantasmas, que afinal são eu mesmo sob a forma de mil espelhos e de ecos inenarráveis. (Campos de Carvalho: Inéditos, Dispersos e Renegados, org. Geraldo Noel Arantes)

“Escritor conhecido mais desconhecido do Brasil, Campos de Carvalho nunca ocupou o lugar que merece: jamais ocupou o cânone da literatura brasileira”, diz dele um leitor mais do que suspeito, o paulista Antonio Prata – é seu primo-neto. Prata é tão devoto de Campos de Carvalho que fuça em seus livros todo ano, religiosamente, embora, como se sabe, o autor mineiro fosse um ateu furibundo. “Nos anos 1960, Campos de Carvalho foi visto como pornográfico e anticlerical, o que irritava a direita; já a esquerda o via como um surrealista alienado. Glauber Rocha, por exemplo, ao se referir a’O púcaro búlgaro, escreveu um artigo tachando Campos de Carvalho de ‘besta’, porque, afinal, pegava mal atacar a Bulgária, um país que levava a sério uma experiência revolucionária, a qual deveria ser louvada e nunca ridicularizada”, lembra Prata, entre risos. Só que O púcaro búlgaro, seu último romance, é a história de um sujeito que, ao encafifar-se com um vaso (púcaro) búlgaro em uma exposição, parte em expedição para a Bulgária com o propósito de descobrir se o país de fato existe… Nada mais longínquo do realismo militante e por vezes panfletário pedido por Glauber.

Os argumentos dos livros de Campos de Carvalho são enganosamente simplórios. A lua vem da Ásia, seu mais famoso livro – se fama for um termo adequado neste caso –, é contado por um incerto Astrogildo, sujeito que descreve com assombro os luxos do hotel em que está instalado; aos poucos, vamos notando que o hotel é na verdade um hospício, e o que era riso se converte em tristeza. Niilista sem perder o nonsense jamais, Vaca de nariz sutil é narrado por um um ex-combatente de guerra que não diz (ou esqueceu) o próprio nome e não vê mais sentido na vida entre os homens. Abrigado numa pensão, passa os dias a espiar por buracos de fechadura as absurdas existências alheias (o título  foi tirado de um quadro do pintor francês Jean Dubuffet: “… assim se chamava o quadro, e em vão tenho eu procurado uma vaca assim entre as vacas e sobretudo os homens”). E o virulento e pacifista (se é possível) Chuva imóvel (Campos de Carvalho amava os oxímoros), fechado em chave implacável (“Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo”), trata da história de André e sua irmã gêmea, Andréa, que nutrem um amor incestuoso. Após as mortes da irmã e do pai, André traça uma descida aos infernos em que trava uma batalha com o Diabo.

De nada adianta saber os argumentos dos romances, porém. Todos escritos na primeira pessoa, são uma festa da linguagem, em feroz luta contra o sentido lógico e convenções de todo tipo; um texto simultaneamente formal e absurdista, melancólico e divertido, digressivo mas refém de uma ação que nunca acontece, só se demonstra como ameaça. De fato, neste nível de invenção, pegue qualquer página escrita por Campos de Carvalho e comprove: não há nada parecido na literatura brasileira.

Reeditados em 1995 pela José Olympio em volume único, os quatro livros estão sendo afinal publicados com requinte, capa dura e belo projeto gráfico, pela editora Autêntica, tão mineira quanto o autor nascido em 1916 em Uberaba. O centenário de Campos de Carvalho – morto em 1998 em São Paulo – continua a ser celebrado com a reedição dos romances e também de um volume das cartas que ele publicou no Pasquim. Os textos têm sido estabelecidos por Noel Arantes, um dos raros estudiosos de Campos de Carvalho na academia, e agora, à luz de seu centenário, permitem uma leitura atenta: quem foram os pais e quem podem ser os filhos literários de Campos de Carvalho?

 

Adeus, realismo

“O fato de ter trilhado um caminho alheio aos imperativos de gosto e preferências estilísticas na literatura brasileira deu a Campos de Carvalho a aura de autor singular”, disse ao Blog do IMS o doutor em literatura pela Unicamp Geraldo Noel Arantes. “Tudo que escreveu traz marca inconfundível, inclusive no campo dos excessos. Por isso figura na condição de escritor personalíssimo.” Não teve descendentes pela mesma deficiência de DNA, digamos, que acometeu Guimarães Rosa. “Seria como alguém tentar um colossal solilóquio em ‘jaguncês’ com a desculpa da ‘inspiração levemente rosiana’”, diz Arantes.

“A literatura dele se ramifica em autores diversos como Rosa, Suassuna e José J. Veiga, além de dialogar com Raquel de Queiroz”, propõe a escritora e crítica paulista Noemi Jaffe, que tem um palpite para o silêncio que o cerca: a onipresença do realismo na nossa literatura. “As novas gerações se preocuparam em trabalhar mais uma literatura urbana, cosmopolita e, por isso, realista, do que com algo regional e mágico. Já Campos de Carvalho foi único ao propõr uma visada literária entre a de Guimarães e de Suassuna, mas muito mais humorada e propriamente política, com uma magia bem crítica e alegórica”, contrapõe Jaffe, autora de Írizs: As orquídeas.

Tal como o amazonense Daniel Pellizzari, fã confesso, e o catarinense Manoel Carlos Karam, outro grande excêntrico a ser revisitado, o paulista Nelson de Oliveira tem sido apontado como um nó na linhagem desalinhada de Campos de Carvalho. “Campos de Carvalho captou e filtrou influências longe do lugar-comum, e criou uma forma tão particular de expressão literária quanto Augusto dos Anjos, Hilda Hilst, Guimarães Rosa e Manoel de Barros. Não deixaram descendentes. Tentar repetir o estilo desses inventores é perigoso. Melhor não arriscar, se não quiser cair no ridículo”, adverte o autor de Os saltitantes seres da lua.

O escritor e pesquisador mineiro Carlos Brito e Mello concorda: “Não sei se a literatura de Campos de Carvalho é palatável, se tomarmos como referência uma expectativa de leitura que aprecia linearidade, continuidade, verossimilhança; acho que ela incomoda, perturba, não produz reconhecimento, mas estranheza, e nisso o autor não é condescendente”, detona o mineiro autor de A passagem tensa dos corpos. Editor, poeta e responsável, ao lado de Antonio Prata, pela última entrevista de Campos de Carvalho, na revista Azougue, o paulista Sergio Cohn vai por aí: Campos de Carvalho exerce uma influência em negativo. “Ele é um farol para escritores que buscam uma obra livre, escapando de dogmas literários vigentes. Não ter deixado descendentes diretos demonstra a força do autor, não apenas na sua singularidade, mas também por ser consequência do autor nunca ter buscado uma posição de poder no ambiente cultural brasileiro”, afirma o autor de Um contraprograma.

“Artistas singulares como ele não são avaliados por ascendência ou descendência, ao menos imediatas”, esquiva-se o escritor e crítico gaúcho Luis Augusto Fischer. “Pode-se rastrear parentescos — sua singeleza, por exemplo, me lembra certos momentos do Mário Quintana. Penso nesse surrealismo manso dele, que recusa a estridência — nisso, até o Manoel de Barros é diferente. Por outro lado, o amalucado da situação que as narrativas dele criam me lembra gente como o carioca Carlos Süssekind, não será?”, arrisca o autor de Duas águas. Brito e Mello aponta outras similitudes. “Talvez seja mais interessante seguir pelas sensações, pela experiência de desconcerto que tive, por exemplo, ao ler Lourenço Mutarelli, onde enfrentamos uma perturbação que não se deslinda. Sensação semelhante com Valêncio Xavier, dessa vez num nível áspero, ferino. Tento dar conta de sensações que emergem num terreno instável, perigoso”.

A lua vem da Ásia: primeira edição, da José Olympio (1956), e reedição de 2016 da Autêntica

DNA: NDA

Conforme dito, Rosa, Hilst, Quintana, Karam, Suassuna, Valêncio, Süssekind, Mutarelli, Pellizzari e Oliveira talvez balancem na linha involutiva de Campos de Carvalho, bem como, suspeito, a obra de Murilo Rubião, o Phutatorius de Jaime Rodrigues, o Agora é que são elas de Paulo Leminski ou o Hotel Hell de Joca Reiners Terron. Mas em que consiste seu legado? Brito e Mello recorre ao suspeito usual: o surrealismo. “É como se decidíssemos não cavar na direção de um baú enterrado no quintal de nossa casa, plantando sobre ele uma horta fértil, onde nascerão legumes que já conhecemos, que nos alimentam bem e que mastigamos sem receio de engasgo – o que não quer dizer que dessa horta não possam resultar sabores sublimes. Isso não deveria nos impedir de cavar: pode ser que encontremos ouro, pode ser que encontremos peste, e pode até ser que não exista o baú. Mas cavar já terá sido importante”, diz, tateando uma explicação para o pouco caso com que a obra de Campos de Carvalho foi captada por leitores e escritores.

“Campos de Carvalho era apaixonado pelo surrealismo”, lembra Nelson de Oliveira. “Amava Apollinaire e Murilo Mendes. Seu principal legado foi essa paixão criativa pelo delírio e pelo insólito, sem esquecer do humor negro, tão devastador. Ele apostou na ficção não mimética, que trata da realidade sem imitar objetivamente a realidade, o que fez dele o herói de uma pequena parcela de autores que se apaixonaram também pelo surrealismo e outras escolas não miméticas”, analisa.

Sergio Cohn busca insuspeitados pontos de convergência na literatura de Campos de Carvalho. “Quando abria suas influências, só citava estrangeiros: Henry Miller, Rabelais, Céline, Tennessee Williams, Alfred Jarry… Certamente tem um diálogo frutífero com Antonio Fraga, autor do maravilhoso Desabrigo, com quem manteve contato. E imagino que deveria se interessar por modernistas como Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Murilo Mendes, e por textos clássicos como o Memórias de um sargento de milícias ou o Memórias póstumas de Brás Cubas”, chuta Cohn.

Escritor órfão que não deixou aos descendentes uma mísera satisfação, Campos de Carvalho pode ser uma espécie de ímã para fenômenos literários “fora da curva”, no dizer de Luis Augusto Fischer, que recorre a uma feliz imagem astronômica. “Um cometa: aparição única, rápida, fugaz, eventualmente até imperceptível, salvo pelos muito atentos, mas assim mesmo, e por isso mesmo, um fenômeno interessante. E mais: um cometa, além da luz, da energia que expressa em si, tem outra função de grande interesse — ele permite verificar e mesmo medir as trajetórias de outros corpos celestes que sem o cometa não são visíveis, ou não se deixam ver/medir de modo nítido.”

Um objeto voador não identificado, que recusa a etiqueta do mundo e cuja maior herança é não se deixar herdar. Noel Arantes esboça uma hipótese ambiciosa para o legado de Campos de Carvalho. “Ele tem a utopia como elemento-chave e propõe reelaborar o discurso utopista com base no anarquismo. São contribuições decisivas para a moderna literatura brasileira, e é provável que em sua obra o louvor do estado de espírito utópico supere todos os outros interesses. Ao dotar seus personagens com uma pronunciada vontade de desordenar, Campos de Carvalho oferta, em essência, o anarquismo utopista como pilar de sua literatura.” O que nos leva a concluir que em um país hipocritamente surrealista como o Brasil só sendo um discreto funcionário público é possível alcançar a utopia de criar uma obra libertária.

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