Chichico Alkmim/Acervo IMS

Chichico Alkmim/Acervo IMS

Família

Primeira Vista

16.05.17

Todo mês, a seção Primeira vista traz textos de ficção inéditos escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês de maio, Silviano Santiago foi convidado a escrever sobre uma foto de Chichico Alkmim.

Chichico Alkmim/Acervo IMS

Chichico Alkmim. Diamantina, MG, circa década de 1910

Mamãe faleceu em junho de 1982. Passados uns dias, fui vistoriar seu quarto de dormir. Respirei profundamente sua ausência, viva em cada detalhe do aposento. Decidi examinar seus pertences. A bela cômoda em peroba maciça. Na gaveta superior, protegida dos olhos curiosos pela roupa íntima, uma velha lata de bolachas Maria. Retirei-a do esconderijo e a destampei. Uma espantosa coleção de fotos de época. Pus-me a manuseá-las e a examiná-las.

Uma delas perturbou-me.

A foto do grupo familiar fora rasgada por olhos e mãos raivosos e, dias depois, restaurada às escondidas por olhos e mãos amorosos. Separo-a do conjunto para melhor contemplá-la. Não a identifico de imediato, mas logo a reconheço por um detalhe. As três flores brancas que estão pintadas ao lado das pernas dobradas em negro do papai.

Os pedaços confusos e informes da foto tinham sido emendados e colados em folha de cartolina branca. Recompunham uma imagem clicada no quintal aqui de casa, de modo parecido às peças daqueles jogos de armar paisagem ou pintura clássica que, antes da invenção do computador, encantavam as crianças sentadas nos ladrilhos do alpendre. Não fossem as mãos hábeis e… (ainda não encontrei o adjetivo justo) da mamãe, a foto teria desaparecido na cesta de papéis.

No verso da foto restaurada, mamãe tinha desenhado uma frase com a letra bordada e arredondada de aluna aplicada do Colégio de freiras Santa Maria:

Retrato de família que o Manuel rasgou.

(Manuel é meu pai. Aquele senhor elegante, sentado. Não consigo tirar os olhos das botas com polainas curtas que ele calça. Tanto o colunista social de O Estado de Minas quanto os vizinhos atestavam que o Dr. Manuel era o último e legítimo vitoriano nos trópicos. Depois da queda do nazifacismo na Europa, as botas com polainas curtas não estavam mais em voga, e tinham desaparecido por completo em 1982, ano em que nós, os homens, nos vestimos com jeans e calçamos tênis. Ao se trajar de maneira formal, em especial para as cerimônias noturnas, o papai não dispensava as polainas abotoadas nas laterais. Confeccionadas em tecido cor palha ou branco, contrastavam com o couro preto impecavelmente engraxado pela empregada e com a calça cortada em casimira inglesa escura. Se não tivesse posto os olhos na foto restaurada e preservada, teria esquecido por completo da existência das botas com polainas curtas. Papai era sóbrio apenas no uso de joia. Nenhum anel no dedo, nem o de esmeralda que ganhou do nosso avô no dia da formatura em Medicina. Apenas a corrente dourada atava as golas do paletó. “Ela mantém o relógio Patek Philippe guardado no bolso do colete e o tique-taque próximo ao coração” – satisfazia a curiosidade da minha irmã.)

A duras penas, consegui do fotógrafo uma cópia perfeita da foto restaurada. Vai reproduzida acima.

(Constantino é o fotógrafo. Ao regressar de Roma em 1949, para onde fora despachado pela família por razões que ficaram posteriormente conhecidas, ele monta elegante e logo bem-conceituado estúdio fotográfico no térreo do edifício Guimarães, situado na Avenida Afonso Pena, ao lado da recém-inaugurada casa Sloper. Especializa-se em cerimônias de batismo, primeira comunhão, formatura e casamento. Corria na boca pequena que ele tinha prazer em equilibrar com retratos de família os bons sentimentos sublimes e artificiais expressos nas fotos clicadas durante, ou após, os rituais. Pela lente da câmara fotográfica escorria, então, a saliva contida, vingativa e mórbida, de solteirão mal afamado. Traçava toda moça donzela da paróquia, como traçava, na Camponesa, o churrasco mal passado de filé mignon, com guarnição de deliciosos pães de queijo. Nada de arroz, fritas ou farofa de ovos. Mantinha a forma de nadador do Minas Tênis Clube.)

Pelas três flores brancas é que reconheci a foto rasgada pelo papai e reconstituída pela mamãe. Na parte central dela, estavam reunidos os quatro membros da família. O fragmento central da foto fora ampliado a dimensões exorbitantes e emoldurado. Por muitos anos – para ser mais preciso, até a separação tardia e definitiva dos meus pais – o quadro esteve dependurado numa das paredes da sala de jantar, reservada às noites festivas.

Como o ensaio de orquestra filarmônica lembra o futuro concerto, ou o manuscrito, o futuro livro impresso, a foto restaurada e guardada na lata de bolachas lembrava a plácida foto da família dependurada na sala de jantar. Algo do acabado só se conhece pelo inacabado. Algo do acabado inacabado só se conhece pelo inacabado acabado.

(Sou eu o menino com quase cinco anos de idade, de pé e vestido de terninho branco, como que batendo continência. Pelo que lembro, não estou batendo continência a alguma bandeira que ficou fora do foco da câmara. Minha mão direita estava em vias de coçar a cabeça, repuxando os cabelos cortados à príncipe Danilo. Os dedos ficavam a encaracolá-los num arremedo do antigo gesto de ficar brincando com o chuca-chuca, preservado da tesoura do barbeiro até os meus três anos de idade. A caçula da família, também vestida de branco, está sentada no colo do papai. O corpo tão desconjuntado quanto boneca de pano era bem comportado e risonho, ao contrário do irmão, de presença cabisbaixa e embirrada.)

Quando o papai nos abandonou, mamãe mandou a empregada despendurar o retrato de família da parede da sala de jantar e dar sumiço com a foto e com a moldura dourada que a enquadrava em suplemento ao passe-partout branco. Mandou a empregada queimar o quadro no quintal. Do patamar superior da escada que baixa da cozinha, ela acompanhou o fogo arder. As cinzas foram levadas pelo vento que soprou forte naquela manhã.

O vazio na parede da sala de jantar é ocupado por mancha quadrangular amarelada. Passamos a ser três em casa, eu já saindo da adolescência e minha irmã nela entrando. Sempre adoentada e alheia à vida, minha mãe pouco ou nada fazia. Vivia da pensão, como se viúva, e nós, como se órfãos de pai. Passamos a ser cinco, se conto a empregada Etelvina e a filha. Seis, na verdade, se conto, à esquerda da foto original, o discreto pedaço de roupa branca da filha adotiva da mamãe, tida por todos como filha caçula da empregada que tinha servido à sua mãe e agora serve a nós três.

As duas figuras de cor, ou as três, tinham desaparecido como que por milagre da foto emoldurada e dependurada na parede da sala. Nela reinou plena a família nuclear branca.

(Minha mãe era simples, modesta e bela. Esbelta, mais alta que o marido. Em altura, puxei a ela. Seu pai fora funcionário público municipal e morava com a família num bangalô da Rua Além Paraíba, na subida do bonde para o bairro de Carlos Prates. Trajava blusa clara e saia escura. Sempre. A patroa imitava a empregada no vestuário feminino em duas peças e na escolha das respectivas tonalidades. Em noite de gala com papai, jamais a vi sair vestida com toalete de soirée em seda estampada, das que são expostas na butique da mãe de Ana Marina e ambicionadas pelas mulheres chiques da capital. Não passava por dondoca ou, como se diz hoje, por Barbie. Soam nos meus ouvidos palavras que tantas vezes escutei: “Na sua família pavão é o seu pai. E como pavoneia!”)

Por que a mamãe tinha salvado a foto original das raivosas lâminas dos dedos paternos? Por que ela tinha mandado retirar a foto de família, emoldurada em cartão chanfrado branco e madeira dourada, da parede da sala de jantar?

Restaurados em paciência e goma arábica, a foto e seu mistério estão a descoberto numa caderneta de anotações que estava no fundo da lata de bolachas. Ao ler as informações, tive acesso aos respectivos nomes dos fotógrafos e a uma espécie de diário íntimo de cada foto. Parecia-me que mamãe tinha transcrito suas prováveis falas, menos silenciosas do que elas. Havia umas trinta anotações e todas sem data. Muitas páginas da caderneta ficaram em branco.

Por que o papai tinha rasgado a foto original clicada por Constantino? Por que ele mandara emoldurar e dependurar uma versão mutilada da inusitada foto na parede da sala de jantar?

Ao ser contatado para ir fotografar a família em casa, Constantino reluta. Papai insiste. Não será uma foto comum, argumenta. Comemorativa, explica ao fotógrafo, a reafirmar que não seria tão diferente das fotos que clicava nos salões dos estabelecimentos de ensino da cidade e à frente do altar nas igrejas. Não importa o custo. E pagaria à vista, contra a entrega do material. Será uma foto da família no mês do sétimo aniversário de casamento, tirada enquanto os pedreiros e os pintores dão os últimos retoques na casa que, para abrigar a todos, ele tinha mandado construir na Rua Mato Grosso. Como as paredes da residência estão ainda sem a demão final de tinta e o interior sem mobília e sem decoração, a foto do grupo familiar seria tirada contra a parede dos fundos da casa.

Requeria encenação.

Constantino concorda finalmente.

A foto do sétimo aniversário de casamento teria a parede dos fundos da nova casa mascarada e honrada por um painel pintado por artista. Representaria uma cena tranquila e bucólica da selva brasileira. Deveriam sobressair, no verde denso e escuro da mata, três flores brancas. A encomenda é feita a Del Pino, filho do falecido pintor Alberto Delpino. Com o Dr. Manuel não adianta rechaçar nem negociar o valor estipulado por ele. O artista economiza em tela e principalmente em tinta.

A imagem pintada ganha as dimensões diminutas de quadro e não as amplas de painel. Papai não fica satisfeito. Parece calça de pegá frango – diz para os botões abotoados da polaina e não diz para o artista, receoso de que na hora h ele carregue de volta a tela.

Os desentendimentos entre o papai e o fotógrafo continuaram por ocasião da montagem da cena no quintal. Constantino enxerga a usura do médico por detrás do tamanho reduzido do painel. E o traço marcante da sua personalidade pública tem de ficar à vista na foto de família. Constantino manda minha mãe chamar a empregada e a filha para segurarem a tela à certa distância da parede dos fundos da casa. Para se ganhar boa perspectiva, ela deve ficar ligeiramente inclinada.

Constantino não se deixa intimidar pela contraordem dada pela voz patriarcal. Insiste.

Mamãe vai lá dentro de casa buscar a empregada e a filha. Chegam, e junto com elas a filha adotiva da minha mãe. Papai embirra de vez. “Ela, não!”. Mamãe dissuade-o. Não há modo de afastá-la da barra das saias da Etelvina. “É como filha dela”, conclui.

Constantino começa a sentir prazer em fotografar o grupo. Alguns retoques a mais e a cena estaria apropriada. Tempo não lhe falta nem paciência, aos modelos.

“Eu era assim mesmo”, me disse Constantino, quando o procurei – já entrevado na cama do hospital S. Lucas, onde fora internado para a cirurgia de câncer na próstata. “Eu sou assim mesmo”, repetiu, “só tiro a foto quando vejo que a arrumação do quadro está perfeitamente adequada à disposição do grupo familiar em cena. Os modelos ganham de presente uma intriga até então impenetrável pelos estranhos, que transparece no rosto e na postura de cada um. A sisudez contraída, empertigada e hierática nos adultos; a descontração natural nas atitudes e nos gestos das crianças e dos excluídos”.

Na mesa de bar, Constantino dizia que fotografar cerimônia de batismo, primeira comunhão, casamento e formatura é simples e é perda de tempo. Serve para ganhar dinheiro e admiradoras. Olhos vivos, peles rosadas, bocas ardentes e dentes sorridentes se somam a seres humanos vestidos e maquiados impecavelmente. Faço-as em série, como artesão de Ouro Preto a esculpir vida afora a mesma figura em pedra-sabão. E embolso o devido e o não devido, por que não?

“Fotografo grupo familiar por prazer íntimo”, concluía. “Ninguém se comunica com ninguém. Cada membro da família é singularmente único e inapelavelmente solitário. Não sei se é efeito da lente que capta a cada um, ou se da ideia de representação em si, a que não estão acostumados quando reunidos no dia-a-dia”.

Mais avança a preparação da cena para o momento-chave da foto, mais ele se diverte com o quadro à sua frente.

Dobra o tripé que sustenta a câmara, levanta-o do chão e dá alguns passos para trás, transportando-o com a força dos braços. Quer apreender o conjunto com alguma ironia. Reabre o tripé e o pousa na terra virgem, ainda recoberta por capim. A distância da câmara fotográfica leva o painel e as serviçais sobressaírem nas laterais, descaracterizando a composição propriamente familiar pela realidade da vida doméstica e pela óbvia inadequação das figuras humanas ao arranjo final do grupo em pleno quintal de casa em construção.

Na verdade, a empregada e sua filha são as duas cariátides que sustentam o painel bucólico. E a família patriarcal.

A usura do patriarca ganha força na imagem.

Constantino fecha um pouquinho o tripé, levantando-o. Levemente, inclina a câmara para o solo. O novo enquadramento extrai a família do fundo tranquilo e bucólico para descê-la até o chão do quintal do imóvel em construção. Salientam-se as mil e uma pedras e pedrinhas ajuntadas, os pedaços e as sobras do reboco que despencaram lá do alto.

A sujeira de quintal. O Dr. Manuel leva horas diante dos espelhos do banheiro e do armário para se aprontar. Mesmo sabendo que o fotógrafo está chegando, não tem o cuidado de mandar os pedreiros limparem o local e dar ordem à empregada para varrer a sujeira.

Constantino só não manda soltar algumas galinhas do galinheiro na horta porque já não seria uma foto de família. Seria um escárnio.

Pede a todos que olhem fixamente para a lente da câmara. Os pais e as empregadas obedecem e ficam durinhos, verdadeiros autômatos. Os filhos não obedecem. À esposa ele pede que repouse a mão direita no espaldar da poltrona em que está sentado o marido – e deveria estar ela. Que não repouse a mão no ombro esquerdo dele. Aquele tampinha emperiquitado! – pensa. Ela como que alonga o tronco do marido sentado na poltrona, assim como a empregada e sua filha levantam o painel de Del Pino ao fundo.

A foto é feita. Constantino e o papai conversam. O fotógrafo exige o pagamento à vista, conforme o combinado. Papai o contradiz, dizendo que o pagamento combinado seria contra a entrega do material pronto.

O médico recebe das mãos da atendente o envelope branco que o fotógrafo mandara entregar no consultório. Espera o último paciente sair para abri-lo.

“Seu pai intuía corretamente minha intenção”, Constantino me diz no quarto do hospital. Fotografara um pai de família pretensioso, arrogante e mão-de-vaca. Uma família aos cacos e à beira da separação. “Minha foto tinha de ter sido rasgada pelo seu pai. Se ampliada, ele jamais a mandaria emoldurar para ser dependurada na parede da sala de jantar”.

Na imagem, a família estava tão rasgada quanto na vida real.

“Altiva e serena,” – continua o Constantino – “sua mãe enxergava a extensão do desastre que a esperava. Eis a mágica da representação em fotografia”.

O Dr. Manuel senta-se na escrivaninha. Mune-se de régua e caneta. Com os dedos espalmados, enquadra primeiro a imagem que lhe é devida pelo fotógrafo e, em seguida, como que tendo à mão o afiado bisturi, estende quatro vezes a régua sobre a foto, sucessivamente.
Traça quatro linhas que se cruzam em quatro ângulos retos. Extrai da foto o apêndice que, intacto, retira do corpo doente.

Com nitidez e acerto, compõe o campo que a lente da câmara deveria ter apanhado.

Na manhã seguinte, manda a secretária entregar a foto reenquadrada ao fotógrafo. Acompanha-a um bilhete em que detalha não só as dimensões da ampliação quanto o modo preciso como será feito o pagamento do trabalho. Cheque ao portador.

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