Festa no cemitério

No cinema

25.07.14

O Festival de Cinema de Paulínia (SP) voltou com toda força, depois de uma interrupção forçada por problemas político-administrativo-policiais e de um ensaio de retorno no final do ano passado.

A edição em andamento, a sexta, já teve de tudo: presença de Abel Ferrara, Jacqueline Bisset e Danny Glover na abertura, entrega de troféus a lojas de sapatos e óticas locais e até uma insólita “entrevista” realizada no palco entre o atual prefeito e seu pai, que anos atrás foi afastado do cargo por improbidade administrativa. Em meio a tudo isso, alguns bons filmes, e é deles que interessa falar aqui.

De tudo o que foi exibido até agora (sexta-feira, 25 de julho), o mais animador foi Sinfonia da necrópole, primeiro longa de ficção “solo” de Juliana Rojas, que havia codirigido com Marco Dutra o belo Trabalhar cansa. Sinfonia é um desdobramento para cinema do telefilme A ópera do cemitério, realizado pela diretora para a TV Cultura em 2013.

Comédia musical ambientada num cemitério, o filme dá um passo à frente no trabalho coletivo da produtora paulistana Filmes do Caixote com os gêneros cinematográficos estabelecidos: o suspense (e a crítica social) em Trabalhar cansa, o melodrama em O que se move, o horror em Quando eu era vivo. Aqui, trechos do filme:

Sinfonia dialoga e mantém intersecções com todos eles, sobretudo com O que se move, com o qual compartilha a irrupção antirrealista da música no seio da narrativa, se bem que de modo invertido: se no filme de Caetano Gotardo a música emerge para elevar o páthos e converter o drama em tragédia, aqui ela serve para introduzir o riso e desmontar a gravidade do tema (morte, sepultamento, luto).

Toda essa engenhosa e ousada construção narrativa se dá em torno de um enredo bastante simples: Deodato (Eduardo Gomes), rapaz ingênuo do interior que trabalha de aprendiz de coveiro num grande cemitério de São Paulo, é escalado para ajudar Jaqueline (Luciana Paes), funcionária do serviço funerário municipal, a recadastrar túmulos, remover restos mortais abandonados pelas famílias e abrir espaço para novas covas.

Sexo, morte e especulação

Sem alarde, como quem não quer nada, Juliana Rojas, que é também autora do roteiro, vai dispondo e entrelaçando seus temas: o aproveitamento “eficiente” da área do cemitério como espelho da especulação imobiliária que comanda a organização do espaço urbano; a excitação erótica provocada pela proximidade com a morte; o humor negro como meio de enfrentar a finitude da vida e o medo do além-túmulo.

Há um jogo de contrastes que aproxima o macabro do cômico e do poético, como na cena em que o aprendiz de coveiro desmaia durante a retirada de uma ossada da cova, ao tocar a própria testa com a mão de um esqueleto, ou no sexo do casal de amantes no fundo de um rabecão do IML. O número musical em que mortos-vivos cantam e dançam sobre as próprias tumbas é irresistível, remetendo ao mesmo tempo aos filmes juvenis de zumbis e ao horror popular do Zé do Caixão. As canções foram todas compostas em parceira por Marco Dutra (música) e Juliana Rojas (letra).

Ritmo, verve, invenção, frescor, construção de personagens interessantes (incluindo os mais secundários), instauração de um espaço crível e maleável, leveza, reversão de expectativas: Sinfonia da necrópole é um legítimo representante dos Filmes do Caixote, essa caixinha de surpresas que nos ajuda a renovar o gosto pelo cinema.

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