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Caro José Geraldo,

 

Você é uma pessoa generosa, fico até encabulado com os seus elogios. E sua carta ainda me dá a oportunidade de comentar as filmagens de obras minhas. Comecemos pelo primeiro filme. Quando Bruno Barreto procurou meu editor Luiz Schwarcz para comprar os direitos cinematográficos de A senhorita Simpson, fiquei satisfeito. Afinal, aquele curso em Copacabana, com sete homens adultos estudando inglês com Miss Simpson, dava um filme dos mais divertidos e, modéstia à parte, inteligentes. Arnaldo Jabor até já havia escrito um roteiro para filmar a obra, tendo desistido por causa da burocracia das leis de incentivo e porque estava se firmando bem como jornalista. Aí veio o Luiz Carlos Barreto e comprou os direitos para seu filho Bruno filmar a obra. O roteiro seria escrito por Leopoldo Serran, o que era no mínimo uma garantia de competência.

Mas e a minha surpresa, Zé, ao saber que o roteiro havia passado para as mãos de Fernanda Young e seu marido, cujo nome não me lembro, e o filme ia se chamar Bossa nova? Diante de tudo o que eu lia a respeito nos jornais e via na TV, logo entendi que o Bruno ia fazer uma comediazinha romântica com o Antônio Fagundes namorando a Amy Irving. Não participei de pré-estreias, festinhas e outros babados e fiz questão de assistir ao filme sozinho, numa sessão de meio de semana à tarde, praticamente me escondendo na última fileira do cinema, para não correr o risco de ser visto por algum amigo. Pois, de fato, tratava-se de uma comédia romântica dispensável, com um total desperdício dos personagens secundários que eram o grande barato da novela.

Tempos depois, quando Beto Brant quis filmar meu romance Um crime delicado, vibrei, pois já havia visto dois filmes seus, Os matadores e O invasor, e gostado muito. Está certo que Um crime delicado era uma outra praia, a história de um crítico de teatro que se apaixona perdidamente por uma moça manca. E cheguei a participar de uma reunião de trabalho com o Beto, o Marco Ricca, ator principal e produtor, e Marçal Aquino, o roteirista.

Não vi nada das filmagens, mas fui a duas pré-estreias e fiquei contente com o resultado. Mas fiquei decepcionado com uma coisa. No meu romance há um personagem importante, um pintor, Vitório Brancati, que usa como modelo Inês, a manca. No meu livro este pintor é um experimentalista radical que faz de seu próprio apartamento uma instalação e considera Inês, como pessoa, uma obra sua.

Um pouco antes de começar, o Beto conheceu um pintor mexicano, Felipe Ehremberg, e convidou-o não só a fazer o papel do pintor como a pintar as obras durante as filmagens, pintando a sua verdadeira pintura. Uma ideia das mais interessantes, só que a pintura dele não tinha nada a ver com a intrincada vanguarda do meu excêntrico artista. Isso, pelo menos para mim, tirou parte da graça do filme. Mas tudo bem, gostei e não renego Crime delicado do Beto, de quem aliás fiquei amigo. Algumas coisas ótimas no filme, por exemplo, são as críticas teatrais do meu personagem Antônio Fernandes, escritas por Maurício Paroni. E também as peças teatrais utilizadas são bem interessantes, embora eu sinta pena de não terem aproveitado a minha Albertine, que inventei a partir de Proust. E que bom que eu pude tirar um sarro dessa classe tão controvertida à qual você pertence, José Geraldo, a dos críticos (rs).

E vale a pena abrir um parágrafo para uma sequência num boteco em São Paulo, onde Antônio Fernandes (Marco Ricca) afoga suas mágoas sozinho, enquanto numa outra mesa o cineasta Claudio Assis (ele mesmo, o de Amarelo Manga) briga com a namorada, e em mais outra mesa Xico Sá (ele mesmo) curte dois travecas. Entusiasmado, perguntei se fora o Marçal quem escrevera aquilo e me informaram que foi tudo improvisação. Bacana esse negócio do Beto abrir espaço para o improviso.

Bom, e Um romance de geração? Concordo com você, Zé: é muito interessante e mistura bem a ficção e o teatro, como no meu romance. Mistura à qual David França Mendes acrescentou uma estimulante mixagem de cinema, documentário e depoimentos pessoais. Depoimentos de toda equipe e de mim mesmo. Pois é, àquela altura da vida tive participação importante no filme, fazendo o papel de mim mesmo. Tornei-me, enfim, galã, como gosta de dizer Lourenço Mutarelli.

Mas para o que dou nota 10 no filme do David é a utilização de três atrizes para fazer um só papel, o de jornalista. Susana Ribeiro, Lorena da Silva e Nina Morena dão um show de interpretação, passando a bola de uma para outra, meteoricamente, o tempo todo. Um filme de custo zero, pois todo mundo fez tudo de graça e as filmagens foram realizadas durante as noites e madrugadas no estúdio de Cícero Rodrigues, o fotógrafo do filme. E devo dizer que, apesar do cansaço, nos divertimos muito naquelas noites.

Mas há mais um filme tirado da minha obra, Zé, e este pouca gente conhece.

Tenho um conto chamado “Estranhos”, publicado em duas antologias da Companhia das Letras, e que narra o encontro, para ver um apartamento posto para alugar, de um homem e uma mulher desconhecidos um para o outro. A partir disso, muita coisa acontece, desde um inevitável erotismo, até rajadas de fuzis e metralhadoras vindas de uma favela das proximidades. Alguém pode estar pensando em O último tango em Paris, mas garanto, meu caro, é toda uma outra coisa. E mais interessante ainda é a realidade.

Um dia aparece aqui em casa, munido de um computador e com um colega russo, o jovem Felippe Gamarano Barbosa, na época estudante de cinema na Columbia University, New York. Pediu-me para sentar-me à mesa e pôs para rodar no computador nada menos que La muerte es pequeña, tirado ipsis literis do meu “Estranhos”, com créditos e tudo. O filme, para o qual ele não me pediu nenhuma autorização, foi rodado em NY, falado em castelhano e com legendas em inglês, com atores e música porto-riquenhos. Como gostei bastante do curta, que foi exibido no Festival de Sundance, e como ninguém estava ganhando nada, não me aborreci e até me tornei amigo do Fellippe.

Eis aí minha trajetória no cinema, Zé Geraldo. Mas duas pessoas já me sopraram que gostariam de filmar O livro de Praga. Vamos ver.

 

Um grande abraço. Sérgio.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: cena do filme Crime Delicado (2005), de Beto Brant

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