Rei Lear, de Peter Brook

Rei Lear, de Peter Brook

Filmes shakespearianos

Cinema

30.11.16

De 1º a 11 de dezembro, o cinema do IMS-RJ promove a mostra Shakespeare e Cinema em parceria com o British Council, apresentando treze filmes realizados a partir da obra de William Shakespeare.  No sábado, dia 3, a exibição do Rei Lear dirigido por Peter Brook, às 16h, será seguida por um debate em torno das adaptações cinematográficas da obra de Shakespeare com Roberto Rocha, professor-adjunto de Literaturas de Língua Inglesa na UFRJ e autor deste texto.

 

Laurence Olivier (1907-1989), no prefácio que escreveu para a edição do roteiro de seu filme Henrique V (1944), afirma que “Shakespeare, de certa forma, escreveu para o cinema”. Olivier argumenta que, mais do que qualquer outra forma de escritura dramática, o teatro shakespeariano se prestaria, pelas suas próprias características formais, ao tratamento cinematográfico. Que características seriam essas? A unidade do drama elisabetano em geral e do shakespeariano em particular não é o ato, como na Grécia Antiga, no classicismo francês e mesmo no drama realista moderno de Henrik Ibsen, mas a cena. A ação das peças de Shakespeare desenvolvese por uma série de cenas mais ou menos independentes, como ressalta Olivier em seu texto. Dessa forma, tempo e espaço tornam-se descontínuos, podendo ser bastante estendidos. Em Henrique V (1599), por exemplo, a ação transcorre na Inglaterra e em várias regiões da França do início do século XV. O que Olivier sugere é que a descontinuidade espaço-temporal da escritura dramática elisabetana teria afinidades profundas com a sintaxe cinematográfica, baseada na montagem e na constante mudança de planos.

O filme shakespeariano seguinte de Olivier, Hamlet (1948), se tornaria imediatamente um clássico absoluto. Quando o realizou, Olivier já era um consagrado ator de teatro, com uma sólida carreira no cinema inglês e em Hollywood. Basta lembrar o seu desempenho em O morro dos ventos uivantes (1939), de William Wyler (1902-1981), ou em Rebecca, a mulher inesquecível (1940), de Alfred Hitchcock (1899-1980), outro importante artista cinematográfico que a guerra obrigara cruzar o Atlântico. A leitura freudiana que Olivier impõe à tragédia de Shakespeare impressionou os críticos e fez do filme o grande vencedor do Oscar daquele ano, levando, entre outros, os prêmios de melhor filme e melhor ator. O maneirismo do cenário, com suas escadarias íngremes e espiraladas, representando visualmente as angustiantes aspirações do protagonista, assim como a forte sexualização de certos ambientes, principalmente o quarto da rainha Gertrude, muito devem às ideias expressas no artigo “Um estudo psicanalítico de Hamlet” (1922), do psicanalista inglês Ernest Jones (1879-1958).

O filme de Olivier teria forte influência nas adaptações da tragédia que o sucederam, principalmente na de seu conterrâneo Kenneth Branagh (1960). O Hamlet, de Branagh (1996), teve como diferencial o fato de apresentar a versão integral da peça, com uma duração de mais de quatro horas. Porém, em várias partes do mundo, como no Brasil, o filme foi lançado em uma versão reduzida. Em sua interpretação de Hamlet, Branagh dá um vigor físico ao personagem, ausente em Olivier, e que muitas vezes chega a lembrar estilo de atuação de um Errol Flynn (1909-1959), sobretudo na cena final, em que o príncipe literalmente voa em direção ao vilão Claudio, sustentando-se em um dos candelabros da sala do trono.

Muitas vezes, uma adaptação de Shakespeare para o cinema baseia-se não apenas no texto dramático, como também em uma montagem específica da peça em questão. É o caso do Rei Lear (1970), de Peter Brook (1925), versão cinematográfica da montagem por ele dirigida para a Royal Shakespeare Company, em 1962, fortemente influenciada pelo ensaio de Jan Kott (1914-2001), “King Lear, ou Fim de Jogo”, no qual o crítico polonês aproxima o universo trágico de Shakespeare do absurdo de Samuel Beckett (1906-1989) e Eugène Ionesco (1909-1994). Numa entrevista dada na época da produção da peça, Peter Brook afirmou que o Rei Lear era “o primeiro exemplo do Teatro do Absurdo, do qual o que de melhor no teatro contemporâneo se originou”. No ano seguinte, o diretor soviético Grigori Kozintsev (1905-1973) estreia a sua versão de Lear. Nela, estão refletidas de forma contundente as palavras do  protagonista quando ele toma consciência da situação humana no mundo que o cerca: “Pobres coitados, nus, onde estiverdes/ Sofrendo o desabar desta tormenta / Como vos vão defender de estações/ Assim, cabeças sem teto, estômagos/ Vazios, andrajos esburacados?/ Ah! como eu fui tão descuidado disso!” (tradução de Aíla de Oliveira Gomes, 2000). No filme de Kozintsev, o absurdo do mundo de Lear tem um fundo político que não pode ser descartado.

É curioso que um filme no qual a linguagem de Shakespeare está totalmente ausente possa ser considerado uma das mais fiéis adaptações de outra de suas tragédias. Akira Kurosawa transportou a história de Macbeth para o Japão. Seguindo de perto o enredo shakespeariano, os principais personagens estão todos presentes, mas com uma roupagem tipicamente japonesa ao estilo do teatro nô e dos filmes de espada japoneses, gênero extremamente codificado. A Escócia medieval retratada em Macbeth, de William Shakespeare, em muito se assemelha ao período Sengoku, ou dos Estados em guerra, retratado no filme de Kurosawa, no qual a conquista do poder é uma batalha sangrenta eivada de estratagemas e traições. O Castelo da Teia de Aranha, título original do filme (que aqui se chamou Trono manchado de sangue), é um espaço claustrofóbico onde os personagens tramam a tomada do poder, e são bem-sucedidos, mas finalmente são destruídos pelos conflitos internos e externos criados por eles mesmos.

Talvez tenha sido a violência gráfica presente em Shakespeare (lembre-se do assassinato da esposa de Macduff e seus filhos) que atraiu Roman Polanski (1933) para adaptar Macbeth junto com o crítico Kenneth Tynan (1927-1980) em 1971. Polanski escolheu Jon Finch (1942-2012) para viver um Macbeth jovem e ambicioso, capaz de levar seu destino até o fim, sublinhando dessa forma o heroísmo de um individualista radical já presente no texto shakespeariano. Porém, o mal que impregna o mundo não é debelado, e a cena final do filme de Polanski, ausente em Shakespeare, indica que o círculo de violência se fecha apenas para ser reaberto uma vez mais.

Quando se pensa em um filme shakespeariano, pensa-se normalmente na adaptação de suas peças. Esquece-se, assim, que ele também foi um grande poeta. Seu livro de sonetos (1609) possui alguns dos momentos mais fortes da lírica em língua inglesa. Essa sequência de 154 poemas, que adquire sua unidade a partir de um tênue fio narrativo, figura os diferentes estados subjetivos que emergem em uma relação amorosa que envolve três sujeitos: um jovem aristocrata, um poeta maduro e uma mulher que se interpõe entre os dois. The Angelic Conversation (1985), de Derek Jarman (1942-1994) acentua a temática homoerótica da obra pela escolha dos poemas lidos por Judi Dench, que se sobrepõem às imagens de dois homens jovens que ora são mostrados juntos, ora separados. O filme é um exemplo marcante do que Pier Paolo Pasolini (1922-1975) chamou de cinema de poesia, em oposição ao cinema de prosa, numa polêmica célebre com o diretor Éric Rohmer (1920-2010).

Em 1979, com A tempestade (1979), filme baseado na peça homônima que talvez seja a última de William Shakespeare, Jarman fez um filme em estilo camp, no qual a ilha paradisíaca do original é substituída por um decadente palácio aristocrático. Esse radical posicionamento estético se afasta drasticamente da leitura tradicional da peça de Shakespeare, que figura Próspero como um retrato do artista. Ao invés disso, Jarman mostra-o como um tirano que usa a arte da magia e os poderes sobrenaturais de Ariel para controlar e submeter todos os outros habitantes da ilha, incluindo sua filha Miranda e o amado dela, Ferdinando. É um filme que, além disso, aponta para o controle da sexualidade como a mais poderosa arma de controle social.

Na escolha de um conceito visual na adaptação das peças, vários têm sido os procedimentos adotados. Podem os diretores optar por ambientar as peças na época em que Shakespeare as escreveu (entre 1590 e 1610, aproximadamente), no tempo e no lugar em que supostamente as histórias se passam, ou ainda em uma época posterior. No caso de Romeu e Julieta (1968), o diretor Franco Zeffirelli (1923), seguindo os preceitos do “verismo”, caro aos diretores italianos que formaram seu estilo a partir do neorrealismo, escolheu dois jovens atores com idades bem próximas às de Romeu e Julieta de Shakespeare, 16 e 14 anos respectivamente. Quanto ao período histórico, ele reconstitui fielmente a Itália renascentista do século XIV. O uso abundante de diferentes locações ajuda a criar a atmosfera propícia para os vários episódios da história dos dois jovens amantes, locais mais amenos para as cenas românticas e locais mais áridos para as cenas de violência.

No caso de Ricardo III (1995), dirigido por Richard Loncraine (1946) e estrelado e corroteirizado por Ian McKellen (1939), os autores do filme decidiram localizar a peça numa fictícia Inglaterra totalitária da década de 1930, em clara referência ao nazismo alemão e ao fascismo italiano. O filme, na verdade, adapta para o cinema uma encenação da peça dirigida por Richard Eyre (1943) para o Royal National Theatre de Londres, estreada em 1992, e onde Ricardo era concebido como um ditador moderno.

Muitas vezes, os diretores decidem fazer não um filme de Shakespeare, mas um filme com Shakespeare. Um exemplo marcante é Garotos de programa (My Own Private Idaho, 1991). Apesar de incluir no seu diálogo trechos de Henrique IV, Primeira Parte (1597), o filme se abebera muito mais do Falstaff, de Orson Welles (1915- 1985), de 1966. O herói do filme de Gus van Sant, Mike Waters (River Phoenix), é criado a partir de um personagem secundário da peça e do filme de Welles, Pons, um dos companheiros de farra do Príncipe Hal, o futuro rei Henrique V. Da mesma forma que Hal irá repudiar Falstaff no final da peça e do filme de Welles, afastando- se assim do universo popular e carnavalizado no qual viveu até se tornar rei, Scott Favor (Keanu Reeves) repele Waters e o ambiente contracultural onde os dois jovens se conheceram.

César deve morrer, de Paolo (1931) e Vittorio Taviani (1929), de 2012, embaralha as fronteiras dos gêneros para documentar/recriar uma encenação de Júlio César (1599) feita com atores amadores em uma prisão italiana de alta periculosidade. O claustrofóbico ambiente carcerário, onde grande parte do filme é rodado em preto e branco, serve de metáfora para a Roma shakespeariana dividida entre os que lutam pela manutenção da República e de sua liberdade individual e os que querem impor o regime imperial, dominado por uma figura carismática (César) com poderes quase absolutos.

Os procedimentos aqui elencados e as respectivas posições estéticas dos filmes citados demonstram a riqueza com que a obra shakespeariana tem sido recriada no cinema. Cada um dos filmes nomeados constitui uma obra autônoma que conquista seu valor não por se basear em obras de Shakespeare, mas pelos meios de (re)criação por eles engendrados a fim de tornar essa obra ainda artisticamente viva e significativa, passados 400 anos da morte de seu autor.

MAIS SHAKESPEARE E CINEMA

Shakespeare, cinema e leituras: para lembrar os 400 anos sem (ou com) Shakespeare, e celebrar o ciclo Shakespeare e Cinema, o IMS convidou Maureen Bisilliat, Gustavo Gasparani e Marta de Senna para ler e comentar, em vídeo, trechos da obra do dramaturgo.

Mostra Shakespeare e cinema – Programação completa

Palestra Shakespeare e Machado: romances e contos, com Marta de Senna.

Pop Shakespeare, por Elvia Bezerra: de “Ser ou não ser” à sobremesa “Romeu e Julieta”, a marca de Shakespeare na cultura brasileira.

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