Garotas, substantivo plural

Colunistas

26.11.14

Não gosto de frases que, como esta, começam com negativas. Acho que afastam o leitor. Por isso, quando uma frase começa com uma negativa, como na sentença que dá título ao livro de Lena Dunham – Não sou uma dessas, tradução de Not that kind of girl –, a minha primeira reação é procurar o que está implicitamente sendo negado para tentar inverter a sentença. Na recusa do “não” que marca seu título, Lena está afirmando ser uma garota irredutível a tipos. Sua incapacidade de adaptação a modelos prontos, sua inadequação aos estereótipos femininos, seu afiado sentido crítico e um senso de humor que ri de si mesma são as principais qualidades do relato autobiográfico da roteirista de Girls, a enfant gaté que faz sucesso ridicularizando o mundo adulto e o suposto fracasso da sua geração.

Lena Dunham em foto oficial de divulgação do livro (Autumn de Wilde/Divulgação)

Se todas as revoluções já foram feitas – da industrial à pós-industrial, da feminista à pós-feminista, da sexual à pós-sexual –, o “não” do título atravessa a narrativa como a única possibilidade de ser diferente. Se não há a possibilidade de construção de um projeto de vida, se a chamada vida adulta não tem projeto a oferecer, o que resta a Lena – assim como suas personagens na série – é dizer o que não quer ser quando crescer. A negativa será o motor do seu relato ensaístico, fragmentado, formalmente marcado pelas narrativas em blogs ou redes sociais. A julgar por como Lena descreve a si mesma, ser mulher, mesmo no século XXI, mesmo sendo criada numa família descolada, mesmo estudando em uma universidade alternativa, continua sendo um grande problema.

“Por mais que tenhamos trabalhado muito e por mais longe que tenhamos chegado, ainda existem muitas forças que conspiram para dizer às mulheres que nossas preocupações são fúteis, que nossas opiniões não são relevantes, que não dispomos do grau de seriedade necessário para que nossas histórias tenham importância. Que a escrita pessoal feminina não passa de um exercício de vaidade e que nós deveríamos apreciar esse novo mundo para mulheres, sentar e calar a boca”, anuncia ela logo nas primeiras páginas da introdução. Esse statement tem força histórica por denunciar a manutenção da hierarquia social de gênero e por negar toda tolice antifeminista que ainda tenta nos convencer de que alcançamos o limite possível da igualdade. Ou seja, chega.

Não, não chega. Pelo menos não enquanto houver relatos de experiências sexuais como os de Lena. Ela expõe de forma corajosa e dura a forma rude como foi tratada por seus parceiros, as fantasias forjadas por modelos de sexo cinematográficos (“Entre as comédias românticas dos grandes estúdios e a pornografia, ficamos com a nítida impressão de que fazemos tudo errado. Nossos lençóis não são corretos. Nossos movimentos não são corretos. Nossos corpos não são corretos”), as decepções que já haviam pontuado a primeira temporada de Girls, como na polêmica cena de sexo de um dos primeiros episódios, a qual ela volta no livro: “Ele me levou para cama, onde me virou de bruços. Álcool, medo e fascinação turvam a minha memória, mas sei que a meia calça foi embolada e colocada na minha boca. E ele falou comigo, soltando torrentes das maiores imundícies que eu já ouvi sair da boca de um ser humano”.

Lena problematiza no sexo tudo que significa para uma mulher não atender a uma expectativa forjada em moldes impossíveis de alcançar, incluindo seus problemas com a balança e as inúmeras dietas a que se submeteu como tentativa de se encaixar em padrões de beleza e magreza (“As primeiras poucas vezes que Joaquim e eu transamos foram rápidas e um pouco tristes. As lâmpadas do teto zumbiam. Ele não olhou para mim e depois foi logo embora. Achei que, de alguma forma, talvez tivesse sido minha culpa. Talvez eu fosse um saco de batatas, sem criatividade na cama, paralisada pelo meu desespero de agradar. Talvez estivesse destinada a ficar lá deitada, dura feito pedra, até ser velha demais para fazer sexo.”)

Quando, desde o título, anuncia “não sou dessas”, ela encontra a única possibilidade de afirmação nesta negativa: não sou aquilo que querem que eu seja. Tarefa difícil, sobretudo para mulheres, e ao mesmo tempo cada vez mais necessária. Um dos legados deixado pelo feminismo do século XX foi a possibilidade de nos rebelarmos contra as formas pré-determinadas de gênero. Para as mulheres, um desafio ingrato (para os homens também, mas por outras razões que não vêm ao caso). Não se encaixar em padrões de feminilidade – seja lá o que isso quer dizer – pode significar, como nos relatos de Lena, rejeição social e masculina, desprezo por si mesma, angústia e ansiedade. Vencer a ideia de que há um jeito certo de ser mulher é um dos bons resultados do livro. Afinal, trata-se de uma jovem cuja mãe lhe ensinou o valor do movimento feminista e que faz questão de se incluir nessa linhagem quando escreve: “Entendi que o feminismo era um conceito valioso muito antes de perceber que eu era uma mulher, ao ouvir minha mãe e suas amigas discutirem os desafios de navegar no mundo das artes dominado pelos homens”.

Faz parte desse desafio duas dificuldades que são, de certa forma, não se submeter às imposições das normas de gênero e ao mesmo tempo não sofrer ou lamentar pelas consequências de se rebelar contra os padrões. Primeiro, por que a rigor eles não existem. São produto de um sistema capitalista que pretende moldar corpos, comportamentos, famílias, afetos e sentimentos em direção à produção e ao consumo. Segundo, por que, como tão bem ensina a filósofa Judith Butler, as normas de gênero dependem da sua repetição e por isso podem ser modificadas justamente ali onde são repetidas como diferentes. Nesse paradoxo do par repetir/transgredir reside a possibilidade de inventar-se, não ser uma dessas, não ser classificável, estabilizável, presumida, subsumida, limitada, configurada, conformada a um padrão e ainda encontrar algo a ser afirmado: o padrão não existe.

, ,