Giorgetti, a ditadura e a história do cotidiano

No cinema

07.09.12

A memória histórica (livros e filmes sobre um determinado período), a exemplo da memória individual, costuma ser bastante enganosa: tendemos a ver de modo chapado, contínuo e linear aquilo que era desordenado, contraditório, multifacetado.

A época da ditadura militar, consagrada no clichê “anos de chumbo”, em geral aparece nos filmes assim: uma tensão permanente, rostos taciturnos, punhos crispados, discursos inflamados, um perigo em cada sombra. Aliás, a julgar por nosso cinema, era sempre noite. Parafraseando (e invertendo) Drummond, não havia manhãs naquele tempo.

Uma exceção, até agora, tinha sido O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, mas ali havia um álibi: era o período visto pelos olhos de uma criança. Artifício semelhante tinha sido usado por John Boorman em suas lembranças de Londres bombardeada na Segunda Guerra, em Esperança e glória, e por Marcelo Piñeyro em sua visão da ditadura argentina, em Kamchatka.

Só as crianças tinham o direito de ser felizes e despreocupadas. Os “adultos” tinham que ser carrancudos, combativos, para não ser acusados de levianos ou alienados.

Pois bem, entrou em cartaz hoje (7 de setembro, salve, salve) uma crônica de época bem mais matizada, complexa e, ao mesmo tempo, saborosa. Estou falando de Cara ou coroa, o novo filme de Ugo Giorgetti.

Ambientado em 1971, portanto auge da ditadura, é, paradoxalmente, o filme mais leve e menos sombrio da recente produção do diretor (que inclui os melancólicos O príncipeBoleiros 2Solo).

http://www.youtube.com/watch?v=5oRhpk3I3tA

Há várias razões para isso. A principal é a fina percepção histórica do cineasta, que pode ser conferida nesta sua deliciosa entrevista à escritora e cantora Natalia Barros. Giorgetti sabe distinguir: uma coisa era a ditadura, com tudo o que implicava de nocivo ao país e aos indivíduos, outra coisa era a vida de cada dia no período em que ela vigorou.

Arte e política

Outro trunfo do diretor foi ter-se valido de suas memórias pessoais. Sem nunca ter sido um militante “da ativa”, ele viveu aquela situação política pelas beiradas, recebendo ocasionalmente seus ecos e estilhaços, mas envolvido com outras preocupações. E assim são os personagens de seu filme: jovens às voltas com pequenos projetos, desejos, obstáculos. A questão política acaba entrando na vida deles de modo quase fortuito.

O personagem em torno do qual gira toda a trama é um diretor de teatro (o excelente Emilio de Mello) que tenta a duras penas encenar peças de vanguarda e manter unida sua trupe. Por suas situação de simpatizante de um grupo clandestino, ele precisa arranjar abrigo para dois militantes perseguidos e acaba envolvendo seu irmão mais novo (Geraldo Rodrigues) e a namorada deste (Julia Ianina), que por acaso é neta de um general (Walmor Chagas).

A intriga político-policial nunca se sobrepõe à observação dos personagens e seus dramas particulares. O frescor do filme vem muito do ímpeto de liberdade e experimentação (estética, existencial) que move suas criaturas e que se choca com três ordens de constrições. Uma, evidente, é a própria repressão política, com sua ameaça de prisão, tortura e morte. Outro obstáculo é a estreiteza de espírito da própria esquerda, retratada a um passo da caricatura na figura do militante stalinista. Por fim, a barreira talvez mais terrível de todas: o conservadorismo moral e político impregnado na sociedade e encarnado no admirável personagem do tio taxista (Otávio Augusto).

Em meio a isso tudo há espaço para o desejo, o amor, o riso. O filme tem a observação sutil e o humor irônico que Giorgetti herdou das comédias sociais italianas de Monicelli, Risi e Germi. Há cenas especialmente memoráveis, como a da festinha alternativa em que vai parar, atônito, o militante stalinista; ou a breve passagem em que o taxista elogia com admiração alguém que aparece na TV e que descobrimos em seguida se tratar de… Paulo Maluf. Giorgetti está afiado e inspirado como nunca. Ou melhor, como sempre.

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