Humberto Franceschi, amável amador

Música

22.06.14

Humberto Franceschi foi um amador, no melhor sentido da palavra. Viveu para salvar do esquecimento, esse bicho feroz, os princípios da música popular brasileira. Foi um amador profissional, que transformou o capricho puro e simples do colecionador na bússola de um acervo que, ele bem sabia, formou para sua posteridade.

Foi Carlos Didier, biógrafo de Noel Rosa e Orestes Barbosa, quem nos aproximou. Eu dirigia uma editora e Humberto tinha na mão os originais de Samba de sambar do Estácio, livro curto e sem pretensões que impressionava pela quantidade de informações reunidas sobre um período decisivo da música carioca. No primeiro encontro, ele fez seu número preferido: deixar o interlocutor embasbacado com as preciosidades que mantinha, digitalizadas, num estúdio montado em casa.

Não sei mais o que ouvi, mas lembro o que fez de Humberto um tipo inesquecível para mim: o proverbial mau humor, as imprecações contra o programa de computador que insistia em fechar antes de hora, a música de hoje, a vida, os editores como eu, os colecionadores e pesquisadores como ele. Mas tudo era dito com tamanho humor e paixão que era impossível não querer ficar horas e horas ouvindo música e histórias. E, às vezes, levando umas broncas.

Ficamos meses tentando desempatar o livro. Faltava dinheiro e faltava o que Humberto achava essencial, música. Fomos ao Instituto Moreira Salles pedir apoio para um DVD-ROM, mas nada andava. Foram uns bons dois anos de idas e vindas até que o IMS assumisse integralmente a edição e eu, por puro acaso, tivesse virado editor da serrote.

O livro e o DVD foram, é claro, alvo de críticas impiedosas de Humberto. Mas cada vez que falava do projeto ele dava um risinho meio de lado, porque sabia, nós todos no IMS sabíamos, que o que saiu era exatamente o que ele queria, em todos os detalhes. Até porque no Instituto ele encontrou Bia Paes Leme, capaz de traduzir até os seus pensamentos.

Ontem lembrei imediatamente de dois momentos. Um dia em sua casa, começamos a ouvir Orlando Silva, uma de suas devoções. Ele, emocionado, comentava que o cantor praticava natação para respirar melhor e conseguir a incrível divisão que era sua marca. Lembrei que Frank Sinatra também nadava para melhor o fôlego e levei um dos muitos, inúmeros pitos:

– Mas o cara era trocador de ônibus e brasileiro, pô!

Numa outra tarde, ouvi algo realmente espantoso. Quase 20 minutos de valsas brasileiras tocadas por Baden Powell. Tendo rodado um curta-metragem sobre um pintor naïf brasileiro, convidou o violonista para fazer um trilha. Queria começar por Abismo de rosas e Baden, na hora, não lembrava. Humberto passou a mão no telefone, ligou para Dilermando Reis, que, do outro lado da linha, tocou para que Baden se inspirasse. O resultado só Humberto tinha, entesourado em casa, como muita coisa que não foi para seu acervo público.

A notícia da morte de Humberto Franceschi infelizmente não foi uma surpresa. Mas veio no dia em que acontece a melhor roda do Rio de Janeiro, o Samba do Ouvidor. Intuitivamente, preferi a música ao cemitério. E foi só lá que tive certeza de ter feito a coisa certa, a melhor homenagem: aqueles músicos jovens e incríveis, comandados por Gabriel Cavalcante, só existem com tamanha importância e explorando repertório tão pouco óbvio, porque gente como Humberto se deu o trabalho, por puro amor e dedicação, de lembrar o caminho das pedras.

Paulo Roberto Pires é editor da serrote.

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