Imagens recicladas – por Andreas Lewin

31.10.13

Entre 1 e 3 de novembro, o Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro exibirá cinco filmes da última edição do festival alemão Doku.Arts, realizada em setembro. Trata-se do único festival europeu devotado exclusivamente a filmes sobre artes e artistas. Além dos quatro filmes mencionados no texto, de autoria do criador do festival, também será exibido Kipppenberger (2005), retrato da vida e da obra do artista Martin Kippenberger.

Quarto 237, de Rodney Ascher

Quarto 237, de Rodney Ascher

Um cinema de “segunda mão”, ou um cinema que reutiliza material cinematográfico já existente, representa uma tendência do documentário contemporâneo e oferece, além de novas perspectivas de transmissão cultural e artística, filmes altamente criativos. A livre utilização de material de arquivo desencadeada pela cultura audiovisual na internet, onde a todo instante são feitas citações e comentários de imagens, sinal característico desse começo do século XXI, ressuscitou uma antiga forma da criação de documentários cinematográficos: o filme de compilação, feitoexclusivamente da montagem de materiais de arquivo. Neste ano, pela segunda vez o Doku.Arts dedicou-se a este “cinema reciclado”, apresentando em setembro último em Berlim o programa Second Hand Cinema – Perspectivas para os documentários sobre arte, com filmes novos feitos da montagem de filmes antigos.

A preservação dos direitos autorais sobre materiais históricos parece atrapalhar a transmissão de nossa memória audiovisual. Como queremos transmitir a história da arte e do cinema no futuro? O documentário, forma de expressão que se apoia no tempo, está predestinado a reter e reconstruir a história da criação artística.Os filmes escolhidos ao mesmo tempo comentam e testemunham o desenvolvimento desse gênero e a sua origem. Através de um tratamento inquestionável e apaixonado, os filmes tratam da essência da arte sem precisar de uma cultura secundária, como definida por George Steiner, e sem o cinismo pós-modernista. A rica variedade de estilos é talvez a característica principal do documentário. Em especial quatro filmes – Quarto 237, Tudo isto pode acontecer, Harry Dean Stanton, em parte ficção e Lucien Hervé, fotógrafo, poderiam ser descritos como reconstituições cinematográficas, como documentários ficcionalizados, como ensaios, como retratos. Mas como sempre, os limites não são claros.

http://www.youtube.com/watch?v=rOxukprEwjg

O principal critério usado para o reconhecimento de um clássico é a existência de vários significados simultâneos – a obra clássica não permite uma decifração rápida. Esse é o ponto de partida de Quarto 237 (Room 237), de Rodney Ascher, sobre o famoso filme de horror de Stanley Kubrick, O iluminado (The shining, 1980). Ascher deixa que cinco comentaristas apresentem suas diferentes visões do filme. Somos convidados a comparar essas diferentes formas de leitura, nos deparamos com um turbilhão de interpretações excitantes e divertidas. Um labirinto de símbolos para uma meditação lúdica sobre a obra de Kubrick. Ao contrário de uma sequência convencional de talking heads, neste docuimentário os argumentos se apresentam numa forma visual concreta. Ascher se revela um atento conhecedor da história do cinema, e a utilização de cenas de outros filmes, como por exemplo o Fausto (Faust, 1926) de F. W. Murnau, explicita de forma fascinante a relação de Kubrick com a tradição europeia do misterioso e do sublime.

http://www.youtube.com/watch?v=KMOPMRJiNSQ

No conto O passeio (Der Spaziergang, 1917) do escritor suíço Robert Walser, o narrador redescobre, por caminhos sinuosos, numa floresta, a vontade de viver. A coreógrafa Siobhan Davies e o cineasta David Hinton mergulharam em arquivos e transformaram uma montanha de materiais cinematográficos numa obra de arte que nos abre um novo acesso ao conto de Walser. Tudo isto pode acontecer (All this can happen) é constituído de centenas de pedaços de filmes mudos do tempo em que se passa o relato. A cuidadosa montagem parece dançar ao ritmo do texto de Walser. A elegante composição de sons de Chu-Li Shewring e o comentário recitado de forma sensível pelo ator John Heffernan contribuem para uma composição bem-sucedida. Essa visão ágil e suave dos anos de chumbo da Primeira Guerra Mundial fascina pelas suas observações antropomórficas.

http://www.youtube.com/watch?v=G2-QZ35P_yY

Harry Dean Stanton alcançou fama internacional como ator coadjuvante em produções hollywoodianas. Seu único papel principal digno de ser mencionado parece ser o do inesquecível Travis, do Paris, Texas de Wim Wenders. Como nos aproximar de um ator fechado, que se nega a falar do seu passado? Atriz suíça baseada em Los Angeles, Sophie Huber conhece Stanton há 20 anos e conseguiu algo extraordinário, uma espécie de road movie musical, que deixa o ator manter seu segredo e, ao mesmo tempo, en passant, arranca dele visões de vida por meio de formas cinematográficas. Fotografado de forma excelente por Seamus McGarvey, Harry Dean Stanton, em parte ficção (Harry Dean Stanton – partly fiction) mostra o ator cantando músicas folclóricas americanas e trechos de filmes para definir a atmosfera – melancólica, percebemos pelo canto dos olhos – da viagem cinematográfica de Stanton pela nova Hollywood de Wenders, David Lynch, Sam Shepard, Kris Kristofferson, Debbie Harry. Como ponto alto, o barman de Stanton.

http://www.youtube.com/watch?v=0J25O8yd5lQ

Lucien Hervé (1910-2007) é considerado um dos mais influentes fotógrafos de arquitetura do mundo. Seu trabalho inspirou fotógrafos e arquitetos. Produziu fotos famosas, que às vezes irradiavam uma poesia maior do que o prédio fotografado. Com Le Corbusier, que via nele a “alma do arquiteto”, Hervé viajou pelo mundo. Fotografou para arquitetos como Marcel Breuer, Oscar Niemeyer e Alvar Aalto, e para artistas como Henri Matisse e Fernand Léger. Lucien Hervé, fotógrafo (Lucien Hervé, photographe malgré lui), de Gerrit Messiaen, nos aproxima do mundo artístico do fotógrafo e pintor e de seu trabalho com a técnica de montagem, e lança um olhar retrospectivo para uma vida movimentada. Nascio na Hungria como Laszlo Elkán, em 1940 fugiu de um campo de prisioneiros de guerra do leste da Prússia e juntou-se em 1941 à resistência em Grenoble. Foi, entre outras coisas, designer de moda. E, após o fim da guerra, suas inúmeras outras atividades testemunham uma vida social e artística extraordinária.

* Ator e cineasta alemão, diretor entre outros do documentário Ele interpreta com sua sombra (Er spielte sinenn Schatten mit, 2002), Andreas Lewin produz desde 2006 o Festival Doku.Arts, em Berlim.

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