Inezita Barroso canta o Brasil

Música

09.03.15

(Em janeiro de 1959, Lúcio Rangel, então o mais importante crítico musical do país, publicou na revista “A Cigarra” um artigo exaltando as qualidades de Inezita Barroso, que já se firmava como um nome fundamental para a difusão da cultura do interior brasileiro, sobretudo as canções. Inezita morreu neste 8 de março, aos 90 anos, após seis décadas de muito talento e de dedicação ao que amava. O Blog do IMS publica o artigo de Lúcio Rangel, também incluindo em seu livro Sambistas e chorões, relançado em 2014 pelo IMS. Na Rádio Batuta,  um programa reúne 11 gravações de Inezita.)

Inezita Barroso é um caso raro entre nós: cantora de grande sensibilidade, dona de uma voz maravilhosa, de belíssimo timbre e de grande volume. É, ao mesmo tempo, uma artista consciente, sabe o que canta, procura nas fontes a inspiração e os motivos genuinamente populares. Mulher culta e estudiosa dos nossos ritmos e de nossas melodias, a cantora que São Paulo deu de presente ao Brasil conta hoje com uma verdadeira legião de admiradores, não só em seu estado natal, como em qualquer recanto do país aonde chegue uma estação de rádio ou tevê, onde quer que exista um fonógrafo. Ao contrário de muitas outras pseudo-estrelas, Inezita, se hoje é um nome dos mais famosos, deve somente ao seu trabalho e à sua arte a projeção que alcançou, pois a moça desconhecida de ontem jamais lançou mão de um desses recursos de publicidade que tem feito a glória efêmera de muita gente que surge no cenário da nossa música popular e desaparece com a rapidez dos meteoros.

Foi Evaldo Rui, o saudoso compositor, grande descobridor de talentos, que levou Inezita Barroso a enfrentar, pela primeira vez, o microfone de uma estação de rádio, a Bandeirantes, em 1950. Nervosismo, nenhum. Consciente de suas possibilidades, sabendo tirar de um violão os belos acompanhamentos que emolduram suas canções, Inezita parecia uma veterana; o microfone, que apavora tanta gente, parecia velho conhecido.

No mesmo ano tomou parte no filme Ângela, realizou recitais no TBC e no TCA, no Teatro Colombo e em inúmeras residências de amigos. Em Recife cantou pela primeira vez como profissional. Sua fama já se espalhava por todos os estados do Brasil.

Em 1952 apareceu em mais dois filmes – Destino em apuros e O craque. No ano seguinte, em É proibido beijar e Mulher de verdade, neste último como estrela. Realizando uma das carreiras mais brilhantes e mais rápidas, Inezita, que nos três primeiros anos de exibições mostrara toda a sua arte, sua sensibilidade e sua bela voz, vê, em 1954, a coroação de seu trabalho, o prêmio aos seus esforços em divulgar as mais belas páginas do nosso cancioneiro popular: recebe nesse ano o prêmio Roquete Pinto e o prêmio Guarani, o primeiro como melhor cantora de rádio de música popular brasileira, o segundo como o melhor do disco, na mesma categoria. Mais um filme vem se juntar aos anteriores: Carnaval em lá maior.

Gravando, primeiramente, na RCA Victor e, depois, na Copacabana, Inezita Barroso passa para o disco um amplo repertório, músicas dos nossos melhores compositores, peças de origem folclórica, a todas emprestando o seu talento e a sua graça. São da primeira fase “O canto do mar”, “Marvada pinga”, “Soca pilão Iemanjá”, “Pregão da ostra”, “Taieiras”, “Retiradas”, “Benedito Pretinho”, “Dança de caboclo”, os sambas “Os estatutos da gafieira” e “Isto é papel, João?”.

Em 1955 representa o Brasil no festival de Cinema de Punta del Este, como atriz e cantora, recebe mais um prêmio Roquete Pinto, um Saci, como melhor atriz de cinema, realiza uma série de gravações de divulgação do folclore brasileiro, ilustrando uma série de conferências de professores da Faculdade de Filosofia de São Paulo. Grandes personalidades, em visita ao nosso país, travam conhecimento da arte de Inezita -Jean-Louis Barrault, Marian Anderson, Vittorio Gassman, Roberto Inglez, que levam, entusiasmados, os seus discos para a Europa, onde são divulgados pelas principais estações de radiodifusão, em programas que despertam grande admiração.

Depois de percorrer as principais cidades do Uruguai e do Paraguai, como convidada oficial, volta ao Brasil. Os prêmios se acumulam, o terceiro Roquete Pinto, outro Guarani e, pela primeira vez, a Medalha de Honra ao Mérito da Associação Paulista de Imprensa. Grava os seus primeiros long-playings: Canta Inezita, Coisas do meu Brasil, Lá vem o Brasil. Sempre o Brasil.

A menina que aos sete anos, com um violão quase do mesmo tamanho que ela, cantava as ingênuas canções infantis, é hoje um dos grandes nomes do nosso canto popular, uma artista que se projetou no estrangeiro, a mais premiada intérprete no nosso populário. Mas Inezita Barroso continua a mesma pessoa simples e sem máscara, que a todos encanta, a mesma personalidade autêntica que o sucesso não desvirtuou.

Dos sete anos de idade, quando a família mandou que ela parasse com o canto e o violão, que prejudicavam os seus estudos primários, depois da fase do piano, que estudou muitos anos, enquanto “seus dedos executavam Chopin e sua alma respondia aos ganzás, chocalhos, berimbaus, pandeiros, afochês e aos violões, muitos violões” (Thalma de Oliveira), alguns anos passaram, muitos êxitos foram conseguidos. Seus dois últimos long-playings—Vamos falar de Brasil e Inezita apresenta — são duas autênticas maravilhas. No último, reúne composições de Babi de Oliveira, baiana de Salvador, Juracy Silveira, mineira de Guaxupé, Zica Bérgami, paulista de Ibitinga, Leyde Olivé, outra mineira de Uberaba e mais a sua conterrânea Edvina de Andrade, de São João da Boa Vista, que para Inezita o Brasil é um só. Tanto canta admiravelmente canções gaúchas como sambinhas cariocas dos repinicados, sabendo valorizar todos eles, procurando ajustar a sua voz aos diversos gêneros, adaptando a pronúncia das diversas regiões do Brasil, num esforço contínuo de alcançar cada vez maior autenticidade e emprestar maior caráter às diversas peças.

Contando atualmente com a colaboração do maestro Hervé Cordovil, sem dúvida um dos nossos melhores compositores populares, mas, também, um orquestrador dos mais competentes, as exibições de Inezita cada vez mais se aprimoram, a artista sempre procurando se ultrapassar.

Desprezando certos elogios fáceis que lhe não sobem à cabeça, negando-se a assinar fabulosos contratos, Inezita é capaz de largar tudo, tomar um jipe e enfrentar as condições menos favoráveis de uma viagem – a lama e a chuva, as estradas ainda rudimentares dos sertões da Bahia e de Minas Gerais -, para colher motivos musicais ingênuos, mas deliciosos, que, trabalhados por ela, serão os grandes números do seu repertório de amanhã, farão o encantamento dos ouvintes do Norte e do Sul do país, porque Inezita Barroso é hoje a Cantora do Brasil.

, , , , , , , ,