“Democracia de baixa intensidade militariza gestão social” – quatro perguntas para Paulo Arantes

Quatro perguntas

20.06.14

Paulo Arantes é professor aposentado do departamento de Filosofia da USP, autor de 11 livros e dirige as coleções Zero à Esquerda, da Editora Vozes, e Estado de Sítio, da Boitempo. Ele foi um dos mais importantes intelectuais ligados ao PT, mas em 2003, logo no início do governo Lula, rompeu ruidosamente com o partido.

Seu livro mais recente, O novo tempo do mundo (Boitempo, R$ 52, 460 págs.), reúne nove artigos (sendo o primeiro e o último inéditos) em que tece críticas às velhas organizações de esquerda, empolga-se com eclosões populares como as de junho de 2013 e afirma que vivemos uma época de expectativas rebaixadas, na qual já não é possível aprender com exemplos históricos. Mas também é o primeiro livro do autor em que é possível notar um certo otimismo, quase um entusiasmo diante da recente “tomada de consciência” do povo brasileiro.

Em entrevista por email ao Blog do IMS, o filósofo comenta dois junhos: o de 2013 e o deste ano. E afirma, preocupado, que o maior legado da Copa serão mecanismos de repressão mais eficientes. Segundo ele, a “nossa democracia de baixa intensidade” está militarizando a gestão social. O aprofundamento da repressão contra movimentos populares, diz Arantes, tem sido colocado pelos governos como uma “inovação de gestão”. Ele também fala sobre a forma como a ditadura militar venceu ao convencer seus opositores de que foi derrotada, ainda que o grosso de sua base de sustentação continue operando no Brasil. 

 

1. Em seu livro, o senhor fala sobre o fim da era das grandes esperas, de ciclos em que as sociedades ocidentais se mantiveram na expectativa de uma grande mudança para o futuro, quer fosse uma guerra, uma revolução, algo que alteraria a ordem das coisas profundamente. Hoje ninguém parece acreditar em uma mudança radical, parece que o futuro está fadado a ser uma versão remediada do presente. Por outro lado, você demonstra empolgação com movimentos como as manifestações de junho do ano passado. Esse tipo de eclosão não seria meio esvaziada de sentido uma vez que nem seus próprios agentes parecem ambicionar uma mudança radical?

Depende do que entendermos por mudança radical. Se for na mesma linha das grandes expectativas modernas que durante dois séculos alimentaram o imaginário dito progressista de sociedade orientadas para o futuro, segundo a lógica do crescimento indefinido, está claro que as manifestações de junho não assinalam nenhuma daquelas reviravoltas históricas pelas quais desde sempre nos habituamos a esperar nos momentos cruciais de uma conjuntura em transe. Como em 1964. O termo de comparação obviamente não caiu do céu. Ou melhor, caiu sim: quis o destino, no caso, o fetichismo das datas redondas, que os 50 anos da Ditadura que mudou radicalmente o Brasil tenham caído em junho, mais exatamente entre dois junhos, o histórico, do ano passado, e o que está transcorrendo agora. Salta aos olhos o quanto o tempo brasileiro mudou de lá para cá. Ou por outra, o quanto o tempo brasileiro passou a ritmar-se pelo novo tempo do mundo, um regime político de esperas que não comporta mais desfechos conclusivos, embora a contagem regressiva recomece a cada rodada. Há um ano se diz que o Brasil nunca mais será o mesmo depois de junho, mas a situação conflitiva que se abriu então está muito longe da terra em transe anunciada por Glauber Rocha. Me explico. A denominação corrente Jornadas de Junho é claramente uma reminiscência do Dezoito Brumário, de Marx — como se há de recordar, o escrito magistral em que Marx simplesmente inventou a análise materialista de conjuntura, no caso, a que arrastou a Revolução de 1848 ao golpe de Luis Napoleão Bonaparte, uma narrativa de corte balzaquiano cujo decurso, mesmo no registro paródico, é tão teatralmente dramático quanto as incontáveis e memoráveis jornadas insurrecionais da Grande Revolução. Mesmo descontado o despropósito gritante da comparação, ninguém se aventuraria a redescrever junho naqueles termos clássicos. E, no entanto, desde que o mundo é mundo, não há agrupamento de esquerda que não principie uma reunião com uma análise de conjuntura naqueles mesmíssimos moldes clássicos. Junho não coube mais nessa rotina, salvo para ser sumariamente descartado como esquerdismo de classe média. Por isso mesmo soa ainda mais patético o sinal de alarme, não menos rotineiro nessas circunstâncias de desobediência civil com a esquerda institucional de passagem pelo governo: não façam marola que o espectro de 64 está à solta — não que a direita não esteja salivando por conta de uma mudança de guarda iminente. Mas justamente o Golpe de 64 foi desfechado depois de uma escalada de três anos acelerados num campo de batalha no qual a frente popular chegou desarmada no último ato. Foi nossa última catástrofe, a origem do Brasil contemporâneo que agora está mudando de pele. Quer dizer, a versão de agora do Brasil-potência de 50 anos atrás se reapresentou num tempo emergencial em que o futuro perdeu seu caráter de evidência progressista, cada vez mais Segurança e menos Desenvolvimento, para evocar o binômio sinistro da Ditadura, que hoje corre pelo trilho “pacificador” da gestão securitária do social, do encarceramento em massa aos programas de transferências monetárias condicionadas. O Brasil vive assim num clima de emergência de mão dupla. Numa delas, requenta a parolagem arrivista do catching up apoiada na predação regional operada por suas multinacionais. Noutra, multiplica todo tipo de saída de emergência — por exemplo, a viração do chamado empreendedorismo dos pobres. Numa hora em que o capitalismo é para poucos, selecionados entre a massa trabalhadora dessocializada pelo medo da eliminação, não faz mesmo muito sentido esperar por mudanças sociais em profundidade, como se dizia no tempo em que a luta de classes ainda dispunha de um poder instituinte capaz de frear a desagregação inerente à guerra social capitalista, que passou então a ser represada por outros dispositivos “pacificadores”. Nesse andar superior da dominação gestionária não pode haver futuro que não seja a projeção linear de um presente sem maiores ambições que a segurança como um fim em si mesmo.

Na zona de desconforto dos protestos mundo afora, todavia, há novidades. E induzida justamente pelo “presentismo” emergencial que rege o novo tempo do mundo. Quando o futuro se aproxima na forma de colapsos anunciados, e o passado se resume a um amontoado de desgraças, cuja memória pressiona quando muito por retratação, nossa relação alterada com o tempo social muda por completo a experiência da política. Enquanto no topo da cadeia de comando e espoliação, administra-se a percepção coletiva de que a decomposição da ordem capitalista não encerra mais nenhuma promessa, na base parece que se reaprende a esperar sem contar mais com o mítico “dia que virá”, com se dizia nas canções de resistência à Ditadura. A novidade que precisa ser saudada — daí sua impressão de “empolgação” — é o surgimento, depois de quase duas décadas de latência, de uma esquerda desatrelada da miragem progressista e seus custos cobrados antecipadamente. Não é pouca coisa — a rigor uma profanação —, num país com encontro marcado com o futuro, segundo o seu mito de origem, para ser mais preciso, num país que nasceu como uma comunidade imaginada de expectativas, pouco importa se regularmente frustradas, ou talvez por isso mesmo, declarar, e agir em conformidade, nas palavras de um ativista de junho, que a famigerada marcha do progresso pode e deve ser interrompida e que, sendo o presente intolerável, será preciso suspender o futuro para que justiça seja feita. Delirante ou sensata, pode faltar tudo nessa visão, menos o desalento que a seu ver transparece na falta de ambição transformadora na explosão de junho. De fato, nada menos épico do que a revogação de um aumento de 20 centavos, para voltar a falar nos treze dias que mudaram, não o mundo, mas a vida na cidade de São Paulo. E no entanto, uma esquerda “sem futuro” — entendamos,  uma esquerda à altura de uma idade de expectativas decrescentes, encarada tal mutação de época como um dado de realidade da dominação e não como um equívoco filosófico — simplesmente provocou a capitulação da maior concentração urbana de poder político e econômico do país, levando junto no naufrágio a esquerda “com futuro” que aparentava conduzir o barco com o tirocínio da tal correlação de forças que só os velhos marinheiros possuem. Daí o falso problema do sempre lembrado nessas horas “fôlego curto” das revoltas populares de junho, que obviamente só existe se medido pelo metro enferrujado da longa duração da esquerda “com futuro”, cujo fôlego, este sim, claramente se esgotou e por isso sua falta de ar se tornou um problema real de morte por asfixia, o que não é o caso da nova esquerda anticapitalista, que no entanto respira à vontade na mesma atmosfera rarefeita de emergência e governo de exceção na qual ingressamos. Pois se trata de um tempo novo, aliás nem tão novo assim — na França e na Inglaterra, por exemplo, está completando 30 anos ou mais —, de insurreições explosivas que se sucedem segundo uma lógica reativa e antipolítica que se extinguem sem deixar outro rastro além da memória dos ressentimentos acumulados para a próxima explosão. Aqui a coisa nova e ruim da qual deve partir um esquerda “sem futuro” — coisa nova e ruim que a outra, sua antecessora no exercício do poder, qualquer poder, já opera faz algum tempo. É que no capitalismo de desastre e suas correspondentes terapias de choque — para falar como Naomi Klein —, constituiu-se um continuum de públicos-alvo — ninguém pode ficar de fora —, alternada ou concomitantemente, social e punitivo. Assim como se cadastra um sem-teto que pressione o suficiente, depois de bater muito e conter, se “inclui” no cadastro da segurança os amotinados da rua. Esta simbiose entre polícia e política define bem o novo tempo brasileiro que os sucessores da Ditadura passaram a operar desde o início dos anos 90 sob o nome de Pacificação. Mudança radical, para voltar ao seu mote, seria encontrar a porta de saída de engrenagens como essa, ao invés de aperfeiçoá-la com novas “conquistas”. 

2. No artigo em que trata da Ditadura, o senhor diz que estão tentando encurtar a duração do regime e abrandá-lo em um revisionismo à brasileira. Você acha que a tendência é que o regime militar seja relativizado e perca importância na narrativa da história brasileira? Se isso se concretizar, qual a consequência esperada? Quem são os agentes desse revisionismo?

A Ditadura só mudou o país de alto a baixo porque venceu em toda linha. E venceu tão inapelavelmente que nos fez acreditar que a derrotamos. Talvez tenha sido esta sua maior vitória. Esse é o mito fundador do Brasil contemporâneo, o de uma democracia nova que emergiu vitoriosa do tratamento de choque de um regime de aniquilação sistemática de seu inimigos de classe, aliás cuidadosamente selecionados — não se reprimia e desaparecia a esmo. Não que não houvesse resistência e luta. Houve, e muita, desde a primeira hora. Mas onde há resistência, também há colaboração, que foi abundante, para não falar na imensa terra de ninguém dos resignados e adaptados. Trinta anos de Terror Branco no Cone Sul e na América Central resultou por toda a parte em democracias de baixa intensidade, para ainda falta na língua da Guerra muito pouco Fria que deu régua e compasso ao nosso Estado de Segurança Nacional, como pode ser abreviadamente redescrito um regime que soube combinar desenvolvimentismo em marcha forçada e o trabalho sujo prescrito pela chamada Doutrina da Guerra Revolucionária, que os militares franceses derrotados em Dien-Bien-Phu trouxeram da Indochina na mochila e aplicaram na Argélia. Decididamente não foi apenas doméstico o acerto de contas, que de resto ainda não se encerrou. O processo de “pacificação” em que estamos enterrados até o pescoço, por definição, não tem prazo para acabar. Só que agora o inimigo é outro, embora a guerra continue interna, impulsionada pela perene ansiedade das classes proprietárias: será que o Golpe foi suficientemente assustador para apagar de vez até a memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país? Na dúvida, melhor cultivar o temor reverencial dos militares. E o “revisionismo” da esquerda, convencida de que derrotou a Ditadura porque soube reencontrar enfim a Democracia contra a qual atentara no passado, provocando a compreensível embora desproporcional reação dos aparelhos coercitivos encarregados de garantir a lei e a ordem. A intensidade do Golpe foi tal que abalou até o equivalente historiográfico da proibição do incesto, a interdição do anacronismo, pecado mortal, como sabe qualquer historiador. O revisionismo vive disso: a evidência institucional de hoje — extorquida todos sabemos a que preço — retroage até o passado, que passa a ser julgado a revelia num processo instruído por um tribunal, que se for o da história, só pode ser a dos vencedores.

Todavia a virada revisionista não teria conhecido a difusão avassaladora atual sem a mutação no regime histórico da espera pela qual começamos nossa conversa. Como ele é central, basta um exemplo. Durante meio século, o imaginário progressista brasileiro, da esquerda revolucionária aos liberais desenvolvimentistas (uma peculiar hibridação local), deixou-se imantar por uma única expectativa, a de superar o flagelo social do subdesenvolvimento, do qual passamos a ter uma consciência catastrófica a partir dos anos 30 do século passado, nas palavras de Antonio Candido. Essa é a corrente principal ao longo da qual fluía um tempo que só nestes termos era nacional, apesar do antagonismo de fundo, que alargava de tal modo seu horizonte comum que o limiar a ser ultrapassado tanto poderia ser uma ruptura social como uma decolagem modernizadora igualmente desestabilizadora — é só pensar no escândalo político da moderada Sudene. A palavra à esquerda para esta linha de espera era Revolução Brasileira, uma noção de expectativa máxima que a ninguém ocorreria antecipar a fisionomia, embora constasse de nossa certidão de nascença. Pois era tão forte sua irradiação que o Golpe, em princípio desfechado para barrá-la, adotou-a com a naturalidade de um senso comum histórico, não se acanhando de se apresentar como uma “revolução”, ainda que reacionária, na contramão de tudo e todos, menos da geocultura legitimadora do Desenvolvimento. Na verdade, uma contrarrevolução preventiva, no caso, como os seus ideólogos foram os primeiros a reclamar abertamente. Seja como for, um conceito de movimento, como seu par antitético, que afinal não chegara sequer a sair da prancheta, embora o campo popular se agitasse desde que conseguira abortar o ensaio geral do golpe em 1961. Esse é o ponto cego do revisionismo e uma das razões pelas quais demorou tanto tempo para sair do armário. Não constava do repertório de época — e estamos falando do antigo tempo do mundo —, a favor ou contra, Estado de Direito, Democracia etc. e assemelhados, noções que não abrem temporalmente para nada, pelo menos segundo os paradigmas políticos daquele século que esperou e temeu revolução, guerra e cataclismo nuclear. Deu-se então a grande transformação de nossa época — lendo apenas o painel do sismógrafo, no centro do qual se encontra a redescoberta do mal absoluto, o Holocausto, que os 30 anos de crescimento do pós-guerra relegara ao segundo plano de uma tragédia particular. Para frente, até onde a vista alcança, apenas segurança, precaução e estado de alerta como razões de governo normais e permanentes, enquanto às nossas costas um passado de desgraças e violações não cessa de crescer e atemorizar, tornando o presente um único sinal de alarme entre duas catástrofes. Pensando bem, o revisionismo no fundo é apenas um deles, vindo da mesma esquerda que passou a fazer o inventário das violações da democracia por não conseguir mais imaginar a vida depois do capitalismo.  

3. Você critica bastante a chamada esquerda tradicional, que já não seria capaz de compreender e intervir nesse novo tempo de que trata seu novo livro. Por outro lado, sua foto de autor no fim do volume é com um megafone na mão, durante uma aula pública organizada pelo Movimento Passe Livre. No meio de toda aquela manifestação, os fóruns mais amplos que o MPL convocou não eram debates, assembléias com o resto do movimento social, com as pessoas que estavam na rua, mas aulas públicas. É forte essa imagem da organização que chama para si a responsabilidade de educar. O tempo inteiro eles disseram abdicar da função de liderar, mas não abdicaram dessa posição professoral de ensinar. Quando foram ao Roda Viva, mandaram um representante que era professor, o tempo todo buscaram filiação com professores, a exemplo do senhor. Isso não demonstra uma visão ainda mais sectária do que a dos sindicalistas e seus carros de som, a visão de um movimento que adota um tom professoral em relação a seus pares que estão nas ruas?

À primeira vista, um megafone de fato não recomenda muito o autor. Talvez nem a uma segunda vista. Em todo o caso, não custa uma visita ao YouTube, onde o leitor pode ele mesmo verificar o eventual estrago. Na circunstância, foi um expediente diante da pane no sistema de som. Tampouco o microfone atenua muito a desconfiança. Seja como for, o megafone é um ancestral do famigerado carro de som e como tal um dispositivo que em princípio aproximaria seu usuário, mesmo ocasional, da execrada nomenclatura do ciclo que está se encerrando. Como nunca fui um scholar de verdade, a imagem de orador de centro acadêmico não representa propriamente uma queda. Quanto à aula pública, outro dispositivo clássico de mobilização, sendo a extensão de uma relação naturalmente desigual entre quem fala de cátedra e quem ouve literalmente parterre, é por definição um multiplicador de hierarquias sociais. Novamente só me resta sugerir confirmar ou não sua má impressão recorrendo ao único registro disponível.

Dito isso, passemos ao MPL. Tenho lido e ouvido muitas restrições, mas a sua é particularmente bizarra. Nunca me ocorreria e, no entanto, é quase uma evidência. Como o nome indica, um movimento pelo passe-livre só poderia ter nascido num ambiente originalmente estudantil que, por sua vez, não se compreende sem a presença (ou melhor, sem a ausência) de professores. Que tenham se deixado contaminar pelo vírus professoral é uma hipótese plausível, mas não me parece ser o caso, ainda que tenham de fato dado uma aula de política à bancada do Roda Viva. Não chegaria ao extremo de dizer que seriam hoje o sal da terra, como outrora os estudantes russos que povoam os romances de Turgueniev e Dostoievski, muito menos que ensaiam uma “ida ao povo” similar. De qualquer modo, o que não faltam são afinidades próximas ou remotas, alucinadas ou razoáveis, que não toquem o coração veterano do modesto radicalismo de classe média que, segundo Antonio Candido, moldou o espírito antioligárquico da Faculdade em que me formei. Resta a pretensão de educar os demais movimentos sociais, que você lhe atribui. Acho que estão justamente na exata contramão dessa mais do que entranhada e perniciosa ambição do homem culto brasileiro, mandar e desmandar — e ponha mandar nisso — em nome do esclarecimento do povo miúdo, a marcha do progresso de que falávamos há pouco. O crime fundador de Canudos que o diga: “O brilho da civilização através do clarão das descargas”, escreveu Euclides, antes de passar ao capítulo da degola dos prisioneiros, obrigados a dar vivas á República, como precisou lembrar não faz muito Willi Bolle, estudando no Sertão de Guimarães Rosa a guerra permanente que move nossa máquina de moer gente.

4. Passando para o junho deste ano, você diz no livro que o verdadeiro espólio da Copa será um aprofundamento de aparatos coercitivos de vigilância e punição que, em ocasiões futuras, poderão ser acionados com mais eficácia do que hoje. Fora os megaeventos de atenção internacional, que parecem justificar aos olhos da opinião média brasileira que o Estado suspenda a normalidade para maquiar o país de seus problemas, que outras situações poderiam acionar esses mecanismos de exceção?

Em toda e qualquer situação em que o novo inimigo se apresente. Lembrando que no Brasil o inimigo é sempre interno. Salvo a “maldita guerra” paraguaia e nossa presença apenas coadjuvante na campanha da Itália, como os demais latino-americanos, lembrou certa vez um estudioso europeu, fomos poupados dos horrores da guerra internacional de grande escala, mas ao preço de padecermos o inferno nas mãos de nossas próprias forças armadas. E, por isso, não contamos ao longo do século XX com um dos principais recursos de que dispuseram os cidadãos europeus e americanos para exigir a contrapartida dos direitos e do reconhecimento social, as guerras da nação contra seus inimigos externos. Barganha sinistra que, no entanto, pesou na decisão dos países centrais, chegada a hora de avançar sobre as conquistas sociais passadas, decisão de suprimir o serviço militar e profissionalizar o “trabalho da guerra”, transformando-o em mais um posto assalariado reservado de resto, sobretudo nos Estados Unidos, aos seus nacionais de segunda ou terceira linha, os filhos da desigualdade, como se diz por lá. Por essas e por outras, nunca fomos uma sociedade propriamente nacional-militar, e por extensão, salarial, nas quais os conflitos sociais de fundo acabam se acertando num real campo de batalha. Com o inimigo internalizado desde sempre, todo cuidado é pouco ao falarmos na militarização em curso no Brasil.

Pois é disso que também estamos falando ao dizer que, meganegócios à parte, o real legado da Copa será um upgrading dos aparelhos coercitivos. Ou inovação de gestão, como preferem dizer as autoridades encarregadas de todo esse festival de violações, gabando-se, por exemplo, de que com os Centros de Integração de Comando e Controle, Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos, e congêneres, o “legado de gestão pública já é realidade na segurança”, jargão para integração das variadas forças de segurança e destas com as Forças Armadas, para não mencionar o aparato tecnológico antidistúrbios contratado sem limites orçamentários junto aos fornecedores de sempre, Israel, Alemanha, etc. Um outro capítulo seria a tão influente quanto discreta e próspera indústria bélica local, reforçada ultimamente pela entrada das mesmas empreiteiras dos megaprojetos neste ramo de negócio, cuja quinquilharia não exportada destina-se ao controle interno das “forças oponentes” elencadas pelo recente Manual de Garantia da Lei e da Ordem. Como lembrou o ex-presidente do STF Cezar Peluso, “vivemos de fato uma guerra interna no país”. Que, no entanto, não é mais a da Ditadura. Nunca será demais insistir que o inimigo agora é outro. Sendo um perito em recursos humanos, o subversivo clássico de ontem é hoje um gestor estratégico precioso. Assim como o principal risco hoje é social. Por isso multiplicam-se os públicos-alvo, e alvos existem para serem atingidos por algum projétil, ou projeto, como se queira. Por mais intenso e devastador que tenha sido o tratamento de choque da Ditadura, ela não chegou propriamente a militarizar a gestão social. A segurança pública por certo, mas é um caso de figura trivial. Deixou esta tarefa histórica para a nossa democracia de baixa intensidade, herança maior que transmitiu aos seus adversários de ontem, que por sua vez a defendem, tal “democracia racionada”, com um zelo punitivo redobrado. Sobretudo na identificação do novo inimigo: inimigo do povo — de cuja chacina possuem a reserva de mercado; inimigo das últimas conquistas sociais e da PM que as garante; inimigo do desenvolvimento, em todas as suas modalidades; inimigo da pacificação e sua “guerra ao contrário” ao crime organizado e seu duplo, o fantasma do neoliberalismo que nos assombra de quatro em quatro anos. E por aí vamos, pois a construção social do inimigo é interminável como a guerra sem fim que se trava mundo afora desde que o capitalismo saciou sua histórica fome canina pelo trabalho, tornando-se um negócio para poucos.

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