Linda como um neném

Correspondência

23.02.12

Clique aqui para ver a carta anterior                                             Clique aqui para ver a carta seguinte

 

JP,

 

Que zica essa da tua febre, hein. Eu tenho pânico de ficar doente no exterior. Mesmo agora, com plano de saúde, morando num país onde as coisas supostamente funcionam, a ideia de precisar ir ao médico me aterroriza. Acho que isso tem origem na minha temporada na França, quando inventei de ir trabalhar numa vinícola durante as férias e o esforço físico foi tão grande (eram oito horas agachado por dia, cortando cachos de uva com um alicate) que acabei comprimindo um nervo e perdendo parte do movimento dos pés. Passei a caminhar feito um pato, jogando o pé pro alto pra conseguir pousar o calcanhar no chão. Como era um problema passageiro, achei que não precisava contar pra minha mãe, mas ela acabou descobrindo por terceiros e durante uns dias achou que eu tinha amputado as duas pernas e estava escondendo a notícia. Só depois de três meses de acupuntura e fisioterapia o tal nervo voltou a funcionar.

Não gosto nem de imaginar o que deve ser ficar doente na China ou no Vietnã, onde ninguém entende o que você fala e o risco de que uma dor de dente resulte numa remoção de pâncreas ou num implante de silicone é perigosamente real. Mas enfim. Você tá em Hanói, e isso devia me remeter a alguma reflexão sobre o neocolonialismo ou a obra da Marguerite Duras ? mas eu só consigo pensar no Arnaldo Brandão cantando “Liiiiinda como um nenéééém”. Não é fácil.

Você foi no ponto: chegar numa cidade é mesmo aprender a enxergá-la. Já morar nela é correr o risco permanente de desaprender a lição. Porque as coisas vão meio que se nublando, né? Se os primeiros dias são sempre repletos de excepcionalidade e nitidez, os meses seguintes parecem ir se fundindo numa massa compacta de experiência. Terminei outro dia de ler o The Sense of an Ending, do Julian Barnes, e em certo momento o narrador compara a memória a uma caixa-preta de avião, que apaga o próprio conteúdo quando o pouso é bem-sucedido ? a gente só acessa a gravação em caso de acidente. Pois bem: chegar numa cidade desconhecida equivale a chocar-se contra ela. Mas o que sobra quando a gente aprende a percorrê-la?

Quando eu tinha uns oito anos, um colega de escola me fez a seguinte revelação: nem todas aquelas fotos que a gente via nas revistas eram autênticas. Algumas delas, ele explicou, eram modificadas por desenhistas, que retrabalhavam as imagens pra deixá-las mais bonitas. Meu amigo chamava esse tipo de imagem de “foto ampliada”, e a partir de então a gente começou a passar os recreios na biblioteca, folheando enciclopédias ilustradas e guias de viagem em busca de exemplos de manipulação. “Essa aqui com certeza é ampliada”, um dizia. “E essa, ó! O cara nem disfarçou!”, o outro emendava. Nossa obsessão durou uns dez dias. Depois esquecemos e voltamos a ir brincar no parquinho.

Tenho a impressão de que aquele foi um momento importante na minha infância. Eu tava me despedindo de alguma coisa ali, ao mesmo tempo em que ganhava uma percepção meio torta de como as coisas são construídas. Passei a vida desconfiando de tudo, principalmente de mim mesmo, de tal maneira que até hoje minhas convicções ? acredite, eu ainda tenho algumas ? soam como ruídos alienígenas dentro da minha cabeça. Quando escrevo ou penso sobre as coisas, meu esforço é encontrar um olhar que se equilibre entre a surpresa e a desconfiança, ou seja, que não descambe pros extremos malignos do ceticismo ou da ingenuidade. O que me faz lembrar daquela entrevista em que o Raduan Nassar fala sobre os livros que foram importantes pra ele, e no final diz que a leitura essencial sempre foi a do “livrão” que a gente tem diante de si.

Olho no livrão, enfim. E nesses templos aí, que eu espero sinceramente que você tenha visitado. Ordem de bruxo não se discute.

 

Grande abraço,

 

Chico

 

, , , ,