Lost in translation

Correspondência

11.03.11

Estimado André,

Não vi o Surfe no Havaí, desculpe o engano. Mas agora tenho a missão de assisti-lo. Não possuo a tecnologia VHS em casa, lamentavelmente. Vou ver se descubro um DVD velho por aí.

Quanto a Excalibur, assisti uma única vez na infância e minha maior lembrança é da sensação de não compreendê-lo. Lembro de planos brumosos e uma mulher pelada, nada mais. O que provavelmente só confirma tudo que tu me diz a respeito do filme e impõe a necessidade de assisti-lo com a maior urgência possível. Só não vou na locadora agora porque está chovendo e a cidade está em chamas, com engarrafamentos monstruosos, buzinaços, um miasma de estresse alheio e bandos de calouros cobertos de tinta, farinha, azeite e vinagre, gotejantes e alucinados, pedindo moedas nas calçadas e guardando a esmola dentro de caixas de ovo que serão entregues a seus veteranos para fazer uma festa onde todo mundo vai se pegar bebendo lata de Polar a R$2 e ouvindo Jorge Ben das antigas, Legião e músicas da Xuxa, e é uma visão meio perturbadora, porque já estive no lugar deles e essa é uma cápsula do tempo potente que prefiro não abrir hoje.

Invejo bastante essa aventura tua, do Galindo e do Paulo Henriques com o Ulysses, mesmo ainda não pertencendo à seita (pretendo tirar carteirinha muito em breve, desse ano não passa). É lindo imaginar esse mergulho obsessivo numa tradução com significado especial, a filtragem de cada palavra de uma obra gigantesca, a atenção pornográfica ao detalhe.

Lembro de uma passagem de um livro do Philip Roth, O professor de desejo, em que David Kepesh, o protagonista, encontra em Praga um velhinho que está traduzindo o Moby Dick pro tcheco, enredado numa tarefa sem fim que ninguém pediu pra ele fazer, sendo que já existe uma excelente tradução do romance pro tcheco e nenhuma editora quer publicar outra, e quando indagado a respeito de sua motivação, o velho diz que é a própria futilidade do esforço que o encanta, que se não fosse pela total consciência dessa futilidade ele jamais se dedicaria a traduzir Moby Dick para o tcheco, e que portanto ele o faz justamente porque é inútil e vão, e aí está o aspecto libertador da coisa. Tem um contexto político na cena, isso acontece durante a invasão russa e traduzir Moby Dick é também a reação desse velho professor à opressão geral que sufoca sua vida etc.

Talvez essa cena tenha me influenciado na decisão de traduzir o Suttree do Cormac McCarthy no período que morei em Garopaba. Eu tinha lido o livro meses antes em São Paulo e ele tinha basicamente terraplanado a minha vida. Foi pouco depois de ler o The Road. Na época eu ainda tinha um blog e postei algo rasteiro sobre “a obra-prima de Cormac McCarthy, The Road“. No dia seguinte, fui trolado por um leitor dizendo que era constrangedor e patético eu escrever naquele tom sobre um autor que mal tinha lido, que The Road não era nada perto de Blood Meridian e Suttree e que eu devia editar o post pra não fazer papel de palhaço etc. Ele tinha razão e, envergonhado, encomendei os dois na Amazon. E depois disso o Suttree meio que virou o meu Ulysses e em algum momento no processo de mudança decidi que me dedicaria à futilidade libertadora de traduzir o romance só pelo esporte.

É óbvio que acabei não fazendo isso. Mas reli o livro naquela temporada e traduzi o primeiro parágrafo, e mais umas partes soltas. Cara, como é difícil. Ao mesmo tempo, sinto que posso fazer, porque em algum lugar dentro de mim estão as soluções necessárias, e bastaria tempo, empenho e colhões. Fiquei uma tarde inteira futricando no parágrafo de abertura e ficou assim:

Caro amigo nessas poentas e ignotas horas da cidade em que as ruas ficam pretas e vaporosas na esteira dos carros-pipa e em que os bêbados e os desabrigados afluíram ao amparo dos muros nos becos ou terrenos baldios e gatos avançam aprumados e esguios nos temíveis perímetros vicinais, nesses corredores fuliginosos calçados de pedras ou tijolos em que filamentos de sombra dão às portas dos depósitos a feição de harpas góticas não há de caminhar outra alma além da sua. 

É estranho, né? Mas, tendo em mente os limites da minha capacidade, acho que a tradução preserva as características do original: mesmo no inglês, a ausência de certas vírgulas salta aos olhos e exige essa apnéia na leitura, e a linguagem é grandiloqüente, os adjetivos são preciosistas, e o efeito final tem um ar de petulância que soaria ridículo na maioria dos autores, mas é o elemento do McCarthy nos romances desse período, e ele não só se safa como cria um efeito convincente. O livro todo é assim.

O narrador em si é um dos grandes mistérios. É um narrador em terceira pessoa que só é onisciente ao que não é humano, mas que ainda assim consegue se aproximar tanto da percepção objetiva do protagonista que a gente fica sem saber onde ele está. O narrador é Cornelius Suttree? É o McCarthy? É ninguém? É Deus? A linguagem jamais poderia representar a simplicidade da visão do protagonista, que é um vagabundo sem rumo e niilista, mas é dentro dele que nos sentimos a todo momento. Sem aviso, o tempo verbal muda do passado para o presente por uma ou duas frases, dando um efeito de zoom. Tudo é enlouquecedor e às vezes, do ponto de vista técnico, francamente incoerente, mas é tão eficaz que dá vontade de chorar. Se o objetivo maior de um romance é permitir ao leitor experimentar o mundo por uma visão que não é a sua (quem disse isso? Zadie Smith?), Suttree é impecável.

No fim, em outro fragmento que traduzi, tem uma cena em que o Suttree está à beira da morte por causa de uma doença e, deitado na cama, delirante, vê a lâmpada do teto como um interlocutor que pergunta quais seriam suas últimas palavras caso ele morresse agora. Suttree diz que “Ouviriam apenas a minha morte”, e então a lâmpada pergunta se ele se arrepende de algo. Primeiro ele diz “Nada”, mas depois muda de ideia e diz que se arrepende de uma única coisa:

Só uma coisa. Falei da minha vida com amargura e disse que me oporia sozinho contra o ultraje do esquecimento e contra a sua monstruosa indistinção e que firmaria no próprio vazio uma pedra onde todos leriam o meu nome. Dessa vaidade me retrato por completo.

Pra mim esse é o trecho mais importante do livro, porque ele coloca a pergunta que o romance parece tentar responder, linha a linha: uma vez descartada a existência de Deus, e uma vez que se recusa qualquer ideia de salvação, como resistir à pior das vaidades, que é a tentação de ocupar esse lugar deixado por Deus? Lembrar dessa pergunta de vez em quando e considerá-la já é difícil à beça (não é por acaso o tórrido affair do ateísmo com a presunção). E acho que eu idealizo a tradução desse livro porque tenho a ilusão de que lê-lo não basta, de que a tradução me levará, num passe de mágica cabalístico, a um entendimento maior da questão. O que pode não ser verdade. Mas é uma motivação.

Então quem sabe um dia.

Jesus me abane, acabo de lembrar que tenho que ir na locadora de qualquer modo pra devolver cinco filmes que peguei no feriado (só consegui assistir dois). Em meia hora, serei atingido por um 5-hit combo de diárias atrasadas. Guarda-chuva e coragem. Vou ver se eles têm o Excalibur.

Abraço,

D. Galera

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