Luiz e Januário, de filho para pai

Música

13.12.12

Visite também o site especial Luiz Gonzaga: tem sanfona no choro e escute o documentário da Rádio Batuta Luiz Gonzaga: o Sertão é ele!

“Asa branca” tem cinco notas e quatro acordes (dá para tocar só com três também). Quando eu era professor de violão, costumava ser a primeira música que ensinava os iniciantes a acompanhar. Em duas semanas os mais perseverantes já conseguiam tocá-la. “Asa branca” é uma entre tantas ilustrações do que diz o etnomusicólogo John Blacking na última frase de seu importante livro How musical is man?: “Em certas circunstâncias, uma ?simples’ canção popular pode ter mais valor humano que uma ?complexa’ sinfonia”. A possível “simplicidade” de “Asa branca” abriga sem dúvida um vasto conteúdo humano, cujos contornos são difíceis de delinear. Pode-se imaginar canção do exílio mais radical? Ali não sobram palmeiras (aliás, “nem um pé de plantação”) nem sabiás. Se em Gonçalves Dias o canto do pássaro era o índice da terra querida, em Gonzaga seu voo é a alegoria da partida, da deserção (como em “A volta da Asa Branca”: “A seca fez eu desertar da minha terra”). Só o eterno feminino oferece ali um princípio de esperança, esta Rosinha cujos olhos verdes poderão, quem sabe, contaminar um dia a plantação e refundar o mundo. O topos apocalíptico da terra em chamas se prestou também à pungente releitura política feita por Caetano Veloso em seu álbum de Londres, nos piores anos da ditadura militar. Releituras ecológicas seriam mais que pertinentes hoje em dia.

Num outro registro, uma de minhas canções preferidas de Gonzaga é “Respeita Januário“, assinada, como a anterior, por ele e Humberto Teixeira:

“Luiz, respeita Januário (…)
Respeita os oito baixos de teu pai!”

Luiz Gonzaga e a sanfona de cento e vinte baixos

“Oito baixos” é a sanfona de oito baixos, oito botões tocados pela mão esquerda do sanfoneiro para produzir o acompanhamento, mais grave (daí o nome “baixos”) que a melodia, tocada pela mão direita. A diferença em relação à sanfona de 120 baixos (que também comparece na música, mas empunhada pelo filho) não é apenas quantitativa. Sanfonas de oito baixos produzem sons diferentes em função do movimento do fole: quando o fole abre, o som do botão é um, e quando fecha, o som do mesmo botão é outro. (Disse “botão”, e não tecla. Nas sanfonas de teclado – que fica sempre do lado direito do fole, nunca nos “baixos” – cada tecla produz, à maneira do piano, sempre o mesmo som.) Assim, quando o sanfoneiro “ora brinca de inflar, ora esmaga” a sanfona de oito baixos (como faz a namorada com o coração do cantor em “Tipo um baião”, de Chico Buarque), o som não fica indiferente: varia em correspondência. Essa característica – semelhante à que encontramos nas gaitas de boca, nas quais o som é um ao soprar, e outro ao aspirar – causa estranheza em músicos habituados com instrumentos em que, a uma posição de mão, corresponde sempre um mesmo som ou conjunto de sons, casos do piano, do violão e da própria sanfona de teclas. (Daí a opinião corrente entre músicos de Recife, segundo a qual a sanfona de oito baixos seria instrumento de dificuldade inusitada.) A mesma característica também é responsável pelo seu suingue peculiar: o abre-e-fecha de todas as sanfonas é, no caso das de oito baixos, ainda mais agitado, já que em certas melodias é preciso inverter a direção do fole a cada duas ou três notas.

Januário e a sanfona de oito baixos

“Respeita Januário” conta que o pai de Luiz Gonzaga tocava sanfona de oito baixos. Sanfonas de oito baixos fazem menos notas, sendo por isso geralmente mais baratas que as sanfonas comuns, cujos menores modelos possuem 40 baixos. Mas o que acabei de chamar de “sanfonas comuns” certamente não era o modelo comum no sertão pernambucano durante a juventude de Januário. Quando Gonzaga volta à sua terra natal em 1946, após 18 anos de ausência e já cantor de sucesso, seu reluzente “fole prateado” deve ter causado sensação pela novidade. Hoje, ao contrário, a imensa maioria dos sanfoneiros nordestinos usa sanfonas de teclado. As de oito baixos é que são incomuns, especialidade de poucos, como Arlindo (que tocou com Gonzaga e hoje anima um dos melhores forrós de Recife, no bairro de Dois Unidos), Camarão (reconhecido como “patrimônio vivo” do estado de Pernambuco) e Luiz Calixto.

Em todo caso, os dois instrumentos musicais se prestam muito bem, na canção, para expressar relações geracionais, e também ideias sobre progresso técnico e sobre âmbitos geográficos “locais” e “nacionais”. A “evolução” da sanfona se mediria quantitativamente: como podem oito baixos competir com 120? Além de mais numerosos, os botões são pretos, e como ficam espremidos para caber na botoneira à mão esquerda do tocador, emerge a comparação: “Cento e vinte botão preto bem juntinho como nego empareado”. O poder do músico sobre os botões – mais botões, mais poder – se revela então também como um poder sobre pessoas. Não é a menor ironia da canção que isso seja dito na língua dos mais fracos, o português sem flexão de número: cento e vinte botão preto e não botões pretos.

Assim, parte do imenso charme da música está em exprimir a vitória do filho na linguagem do respeito ao pai. Respeito pelo seu território, em primeiro lugar:

“De passagem por Granito,
foram logo me dizendo:
de Taboca a Rancharia,
de Salgueiro a Bodocó,
Januário é o maior!”

Os cerca de 200 quilômetros que separam, de leste a oeste, Salgueiro de Araripina (onde fica Rancharia) e os cerca de 50 que separam, de sul a norte, Bodocó do Exu (onde fica Tabocas), com Granito mais ou menos no meio, formam o retângulo inviolável do prestígio do pai. As referências a Tabocas e Rancharia, conhecidas na região, mas ausentes de mapas do estado, ainda enfatizam mais o “localismo” desse prestígio.

Inversamente, a canção exprime o respeito ao pai na linguagem da vitória do filho, a linguagem dos meios de comunicação cujo centro era a cidade grande: o rádio e o disco.  “Respeita Januário” foi gravada em 1950 no Rio de Janeiro, então capital da República, nos estúdios da gravadora Victor, representante local da RCA-Victor. (Esta companhia norte-americana foi tão importante na história da indústria fonográfica que deu origem à palavra”victrola”, de onde veio o português “vitrola”.) Naquele momento, Gonzaga já havia gravado na Victor “Asa Branca” (1947), “Baião” (1949) e “Que nem jiló” (1950), alcançando imensa popularidade. O baião fazia sucesso, talvez estivesse então no auge do seu sucesso. Era a música do momento, a dança da moda. E justamente “A dança da moda” era o título da canção (de Gonzaga e Zé Dantas) que ocupava o lado A do disco 78 rpm onde “Respeita Januário” era o lado B:

“No Rio tá tudo mudado,
Nas noites de São João:
Em vez de polca e rancheira,
O povo só dança, só pede o baião!
(…)
É a dança da moda,
Pois em toda roda
Só pedem baião!”

Nos nossos tempos de CDs e mp3, perdeu-se, felizmente, a simbologia hierárquica dos discos com lados A e B. Mas é sugestivo que Gonzaga tenha escolhido botar no lado “nobre” do disco (a “faixa de trabalho”, como mais tarde se diria também) a canção que falava do seu próprio sucesso sem nenhuma nuance, sem nenhuma contestação. A música que ficou com o lado B falava exatamente da mesma coisa, mas de forma muito mais matizada e interessante (como se percebeu rapidamente, ficando desta vez o lado B do disco com os favores do público).  Apesar de tudo que Luiz devia a Januário em termos de formação musical e de repertório, e apesar de todo o respeito que a canção de fato expressa, ela também deixava claro, afinal, que o lugar apropriado para a venerável sanfona do genitor não seria o estúdio da Victor, mas provavelmente o descanso em alguma respeitosa vitrine de museu. Ela manifestava assim a visão predominante ao longo do século XX sobre as relações entre o que então se entendia por “música popular” (vista como “moderna”, nacional e internacional) e “música folclórica” (vista como raiz rústica e “meramente” local).

De lá para cá as coisas mudaram bastante, mas é interessante perceber até que ponto mesmo os anos 1950 divergiram pontualmente deste paradigma. Depois do glorioso retorno ao sertão, Gonzaga trouxe a família para o Rio de Janeiro. Seu pai, seus irmãos e irmãs participaran de gravações no Rio de Janeiro e alguns fizeram carreira de músicos, com relativo êxito, embora sempre à sombra dele. Na Discografia brasileira 78-RPM (a monumental e esgotadíssima obra de Jairo Severiano, Miguel A. de Azevedo, Grácio Brabalho e Alcino Santos), há quatro gravações catalogadas onde consta o nome de Januário como intérprete principal, com acompanhamento dos filhos. São elas: “Pronde tu vai, Luí?” e “O balaio de Veremundo”, de 1954, ambas assinadas por Gonzaga e Zé Dantas; “Januário vai tocar” e “Calango do Irineu”, de 1955, ambas assinadas por Januário. As duas primeiras estão disponíveis para escuta no banco de dados on-line do IMS.

Ouvindo os fonogramas, percebe-se que o cantor principal é na verdade o próprio Luiz Gonzaga. Mas a presença de Januário nas gravações, justificando o destaque de seu nome nos selos dos discos, é audível na sanfona que faz as introduções, acompanhamentos e conclusões instrumentais. O timbre e o fraseado permitem perceber que o instrumento ouvido nestas duas gravações é uma sanfona de oito baixos mesmo, não um acordeom cromático (outro nome da sanfona de teclas).

Transcrevo a letra de “Pronde tu vai, Luí?”

“- Pronde tu vai Luí?
– Eu vou pra casa dela!
– Fazer o que Luí?
– Eu vou carregar ela!
– Luí, tu não te alembra
Da carreira que levou
No caminho da cachoeira
Que a poeira levantou
– O pai dela é muito brabo
E a mão dela não me dá
Vou roubar essa cabocla
E vou casar no Caroá
– Seu pai diz que eu sou um pobre
Desgraçado sanfoneiro
Quem falou pra esse velho
Que amor pensa em dinheiro?”

A canção alude a episódio da juventude de Gonzaga, quando, ao envolver-se com moça branca, de família mais remediada que a sua, acabou indo tomar satisfações com o pai dela, que se opunha ao namoro. Quando Januário e Santana souberam, ficaram furiosos, e o rapaz acabou tomando uma surra da mãe (que era a mais “braba” do casal) – a tal “carreira que levou (?) que a poeira levantou”, razão, segundo o depoimento de Gonzaga à sua biógrafa Dominque Dreyfus (autora do indispensável A vida do viajante, onde estou buscando os dados sobre a vida do cantor), de que saísse de casa, entrasse no Exército e acabasse se profissionalizando como músico no Rio de Janeiro, de onde decolou para o sucesso.

O refrão da música usa um verso-feito popular com pergunta-e-resposta, de tipo já usado por Manezinho Araújo na conhecida embolada “Aonde vai valente?”. Em seguida, o coro feminino canta um verso que põe o evento no passado e Gonzaga no papel do rapaz fujão. Nos outros versos, é o próprio Gonzaga que, repondo o discurso no presente, reafirma os direitos de seu namoro de juventude e critica as convenções que pretendem subordinar o amor ao dinheiro. Como em “Respeita Januário” (e nas tragédias gregas), o papel da advertência prudente, da admoestação, fica com o coro, enquanto Gonzaga adota a persona cancional do protagonista impulsivo e meio inconsequente.

Na linda gravação, além da sanfona de oito baixos, ressalta o timbre do coro feminino, muito diferente do timbre “normal” das cantoras que faziam coro nas gravações da época, como se pode escutar em “A dança da moda”, por exemplo. Dominique Dreyfus fala das “vozes sertanejas deliciosamente fanhosas e agudas de Socorro e Chiquinha”, irmãs de Gonzaga. Talvez estas vozes fossem de difícil aceitação pelo público comprador de discos dos anos 1950, o mesmo público que poucos anos depois, seduzido pelas novidades da bossa nova (com o perdão da redundância), relegaria o próprio Gonzaga e sua sanfona, por mais baixos que tivesse, a um temporário ostracismo. Em todo caso, junto com as imensas delícias musicais que Gonzaga nos legou, e que temos razão de comemorar, a escuta destas duas gravações pode nos deixar felizes, neste início de século XXI, por ter mais acesso à música dos equivalentes atuais de Januário e suas filhas.

* Carlos Sandroni é professor de etnomusicologia no Departamento de Música e na pós-graduação em antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de Mário contra Macunaíma – Cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo, Vértice, 1988) e de Feitiço decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), reeditado em 2012.

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