Marisa Letícia da Silva (1950-2017)

Marisa Letícia da Silva (1950-2017)

Luto e barbárie

03.02.17

Um país é tanto mais democrático quanto menor for a desigualdade na distribuição do luto público. A violência de estado, essa com a qual nos deparamos todos os dias em maior ou menor medida, diz respeito não apenas à maneira como as pessoas morrem, mas também como são enlutadas. Esse é um resumo muito sintético da argumentação que a filósofa Judith Butler vem desenvolvendo na sua crítica à tortura, às prisões, e sobretudo ao modo como reconhecemos certas vidas com mais ou menos valor no momento em que são perdidas. O reconhecimento de que uma vida foi perdida seria a única forma de continuarmos vivos. Cerimônias fúnebres e rituais funerários são práticas que “têm por tarefa lembrar aos vivos de amanhã a existência dos mortos de ontem e de hoje”, para usar os termos de outra filósofa, Jeanne Marie Gagnebin.

No argumento de Butler, uma vida tem valor se for enlutada quando perdida. Somos um país sem tradição de luto público, o que de certa forma ajuda a explicar tanto descaso por determinadas vidas em detrimento de outras. Nada mais apropriado para refletir sobre as reações à morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia da Silva. Honrar sua morte é o único e último modo de reconhecer sua trajetória como mulher, como companheira de Lula, como militante do PT, como primeira-dama – e portanto esposa de um chefe de Estado –, como uma figura pública e política que faz parte da história do país. Esses atributos levariam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a abraçar Lula no hospital, o mesmo abraço de solidariedade que Lula já havia levado a FHC por ocasião da morte de outra ex-primeira-dama, a dra. Ruth Cardoso.

Ricardo Stuckert

O abraço dos ex-presidentes Lula e FHC no hospital Sírio-Libanês

É provável que não tenha havido na política duas mulheres tão diferentes entre si: uma acadêmica, outra operária; uma feminista, outra não; uma independente, outra não. No entanto, apesar de tudo aquilo que as afastava, a imagem dos dois presidentes se abraçando, seja na morte de Ruth, seja na morte de Marisa, deveria ser a imagem de um país democrático, em que uma política de luto público se sobrepõe a rivalidades partidárias. Essa imagem, infelizmente, não é suficiente para aplacar o tamanho da violência da qual Marisa e Lula foram vítimas desde o início da internação no hospital Sírio Libanês. Refiro-me ao comportamento da médica acusada de vazar informações sobre o estado de saúde da ex-primeira-dama e a todo o clima criado em torno dos últimos momentos de vida de d. Marisa.

Se Butler identifica a violência de Estado como principal obstáculo à realização de uma sociedade democrática, na experiência cotidiana do Brasil dos anos 2010, há uma explosão de violência que poderia ser chamada de ruptura do laço social. Embora os representantes do Estado – principalmente as diferentes esferas policiais em seus diversos campos de atuação – sejam os agentes mais visíveis da violência nossa de cada dia, com extermínio de jovens negros e da população carcerária, é impossível não ver que essa violência está espalhada para além do campo institucional.

Ainda se pode ouvir os gritos de “VTC” contra a então presidenta Dilma Roussef na abertura da Copa do Mundo, em 2014, um dos sinais do colapso do nosso pacto civilizatório, marco da ruptura do laço social, exposição da nossa misoginia, que se volta agora também contra Marisa. Como me disse ontem um querido amigo, ter um mínimo de humanidade em relação a quem está morrendo ou mesmo a quem está preso – ele se referia ao horror da exposição, pela imprensa, das condições prisionais de Sergio Cabral e Eike Batista – é uma forma de dissidência em relação ao senso comum. Talvez a morte de d. Marisa possa servir para cada um pensar de que lado está. Não na política, mas na escalada de violência que, sabemos pela história, nos leva ao totalitarismo e à barbárie.

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