Mad Max, na estrada entre o épico e o pop

No cinema

26.05.15

Mad Max – a saga toda, iniciada em 1979 – é o lugar onde se encontram o épico e o pop. Inúmeros outros filmes das últimas décadas têm buscado esse encontro, mas talvez nenhum tenha conseguido uma síntese tão potente. Ao figurar seu mundo árido, pós-apocalíptico, George Miller tocou num nervo central de nossa época. Esse nervo segue exposto, vivo, como comprova Mad Max: Estrada da fúria, o quarto e extemporâneo exemplar da série.

Nesta retomada, não se trata, como alguns afoitos disseram, de requentar uma boa história, muito menos de diluí-la, mas de afirmar sua atualidade. Na verdade, em face dos rumos que o planeta tem tomado, o pesadelo compartilhado por Miller parece cada vez mais próximo, real, ameaçador – especialmente no que diz respeito à escassez de água, mas também no fracionamento da humanidade em tribos hostis e irreconciliáveis.

Mas vamos ao filme. Falou-se muito do papel protagonista conferido à mulher – no caso, a imperatriz guerreira Furiosa (Charlize Theron) – neste novo filme, em que ela divide o comando das ações com o próprio Max (Tom Hardy). Mas heroínas virilizadas, “machas”, não são propriamente uma novidade no cinema contemporâneo. Não é preciso fazer aqui uma lista. Da cosmonauta Ripley, de Alien, às ninjas de Kill Bill, passando por Sonja Lara Croft, as telas estão repletas delas.

Matriarcado redentor

A novidade, aqui, seria então a preponderância das mulheres, seu duplo papel de reprodutoras (as “parideiras” do tirano Immortan Joe) e de guerreiras que podem salvar o mundo. O esboço de um matriarcado como redenção de uma humanidade devastada.

Charlize Theron e o grupo de mulheres que protagonizam Max Max

Algumas feministas exultaram ao ver as mulheres conquistarem um poder antes reservado aos homens, outras incomodaram-se por essa conquista ter sido feita ao preço de um embrutecimento extremo. De fato é um tanto chocante, ao menos para um homem de formação antiquada como eu, ver moças angelicais e velhinhas encantadoras saírem disparando bazucas e cortando cabeças. Mas, de algum modo, as mulheres de Mad Max conseguem endurecer sem perder a ternura.

Houve quem relativizasse o protagonismo feminino no filme lembrando que, na hora H, é o herói que salva a mocinha, mas o que é belo, a meu ver, é justamente essa troca constante de papéis entre quem salva e quem é salvo, essa transfusão (literal, como sabe quem assistiu) de energia e afeto.

Tecnologia sob controle

No aspecto da construção visual, destacou-se a circunstância de que Estrada da fúria tem mais de 90% de filmagens reais (ou seja, com recursos estritamente fotográficos, de encenação e montagem) e o restante de CGI (imagens geradas por computador), invertendo a proporção mais frequente nos filmes de ação e fantasia atuais. Não domino esse assunto, mas de fato me incomodam a paisagem natural sintetizada digitalmente e os efeitos de videogame de tantas produções recentes.

No novo Mad Max, esses prodígios tecnológicos estão presentes, claro (afinal, Charlize Theron não amputou meio braço para fazer o filme), mas sob controle. O que impera é um sentido apurado do ritmo e da composição do quadro, em que a grandiosidade e a diversão equilibram-se no mais das vezes de forma admirável, numa orquestração de supercloses e planos extremamente abertos que tem a ver com a tradição do western, dos épicos bíblicos e das histórias em quadrinhos.

É cinema robusto e vigoroso, enfim, que só superficialmente tem a ver com a avalanche de produções ruidosas, descerebradas e descartáveis que infestam as telas do mundo. Para o meu gosto pessoal, poderiam ser abreviadas as sequências de perseguição e combate no deserto, com seu crescendo de explosões, labaredas e decibéis. A partir de um certo momento, essas coisas, em vez de empolgar e emocionar, têm um efeito entorpecente, para não dizer entediante.

Sucata e reciclagem

Mas talvez esse seja um tributo que George Miller tem de pagar à sensibilidade juvenil de nossa época. Nada que anule o vigor do todo e alguns méritos especiais, como a utilização dramática da geografia física (a imensidão plana do deserto, o penhasco que jorra água, os desfiladeiros que se fecham, as tempestades de areia e raios), o aperfeiçoamento da ideia de seres e objetos híbridos (homens-próteses, répteis mutantes, caminhões feitos de partes de automóveis, caminhonetes que lembram bigas romanas, carros que parecem ouriços), além de achados pontuais: a imensa engrenagem oculta na rocha para bombear água, a guitarra que lança chamas etc.

Um conceito-chave parece guiar o conjunto, o de um mundo pós-tudo, feito de sucata e reciclagem – não só de materiais, mas também de técnicas, culturas, crenças e fantasias humanas. O próprio filme é isso, para o bem e para o mal, incorporando sua proposta estética e política em sua própria forma e em seu modo de produção. Tudo isso sem se levar a sério demais, isto é, sem perder a ligeireza e o humor de uma obra de entretenimento.

Permanência: Recife em São Paulo

Mudando radicalmente de assunto, cabe chamar a atenção para Permanência, do pernambucano Leonardo Lacca, que entra em cartaz nesta quinta (28 de maio). Tomara que o título seja um prenúncio de sua presença no circuito, pois é um belíssimo filme, não por acaso vencedor do recente Cine PE.

Conta-se ali, na superfície, uma história simples: Ivo (Irandhir Santos, excelente como sempre), um fotógrafo de Recife, passa alguns dias em São Paulo para acompanhar a exposição de suas obras numa galeria. Hospeda-se no apartamento da ex-namorada (Rita Carelli, também premiada no Cine PE), hoje casada com um arquiteto (Silvio Restiffe).

Acompanhamos o tempo todo esse pernambucano tímido e deslocado, que dorme num home theatre improvisado em quarto, perambula pelas ruas, compra um casaco para enfrentar o frio paulistano, namorica uma moça que trabalha na galeria (Laila Paes, outra premiada em Recife), vai a festas em que não conhece ninguém – e toma cafés, muitos cafés. Um bom modo de ver o filme é atentar para os cafés: o modo como são feitos, os locais, os circunstantes, as conversas ao redor da xícara.

Nesses diálogos balbuciados e aparentemente banais, nas hesitações e silêncios dos personagens, esboça-se todo um mundo de relações afetivas, sociais, culturais. O eixo dramático, como o título sugere, é o que fica dos sentimentos e o que desaparece ou muda de natureza. Mas em torno dessa linha central há uma observação arguta dos descompassos geográficos e culturais. A todo momento Ivo é confrontado com a imagem que os paulistanos têm de sua cidade. Recife está presente pela ausência. Há até uma piada discreta e significativa. Quando alguém pergunta a Ivo “como vai aquela cidade maravilhosa”, ele responde com ironia: “O Rio de Janeiro?”

Mais que os diálogos, porém, importa a construção sutil do relato. Já começa bem: Ivo toca o interfone no prédio da ex-namorada, esta o manda subir e pergunta se ele não tem mais problemas com elevadores. Ele diz que não, mas manda a bagagem pelo elevador e sobe correndo pelas escadas, na esperança de chegar à casa da amiga sem que esta perceba sua pequena covardia. Não dá certo, claro, o que equivale a já começar o filme pegando o protagonista no contrapé, humanizando-o de forma indelével. O melhor é que tudo isso é mostrado de dentro do elevador vazio, onde ficou a câmera. Isso é cinema.

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