Mecanismos internos

Literatura

10.01.12

Não lembro quem é o autor da frase, mas sei quem me contou sobre ela: o crítico Carlos André Moreira. Minha memória deve ter distorcido radicalmente a frase, mas o conteúdo, em minha mente, é o seguinte: “Todos os meus amigos me recomendam romances experimentais e inovadores, mas onde estão as pessoas que podem me recomendar Dennis Lehane?”.

Lehane se tornou bastante conhecido por ter tido várias obras suas adaptadas por cineastas competentes – uma sorte raríssima entre os ficcionistas. Sobre meninos e lobos foi adaptado por Clint Eastwood, e concorreu a um punhado de estatuetas. Ilha do medo virou filme nas mãos de Martin Scorsese e a adaptação de Gone, baby gone marcou a (boa) estreia na direção de Ben Affleck. O fato de ele ser um escritor tão “adaptável” é um indicativo certeiro de que sua ficção não é muito experimental em termos narrativos, nem tão composta de ação interna (duas coisas que não são bem transferidas para o cinema). De fato, Lehane é um autor comportado. E se tornou um dos maiores nomes da ficção policial contemporânea e, em minha opinião, por um bom motivo: pela sua elegância.

Dennis Lehane encarna um tipo de escritor que é simples, acessível e nem por isso simplório ou banal. No grande esquema de classificações hierárquicas e elitistas dos americanos, ele provavelmente seria categorizado como “middlebrow“. No Brasil, não temos uma palavra específica para este termo.

Os norte-americanos costumam usar, com frequência, os termos lowbrow, middlebrow e highbrow ao tratar de obras de artes. Lowbrow seria a arte barata, a cultura de massas, os blockbusters sem cérebro, enquanto highbrow representaria a alta cultura, obras sérias e profundas, de Dostoiévski a Proust. Lendo Naquele dia, de Dennis Lehane, me pergunto se ele não se encaixaria no que os críticos americanos chamam de middlebrow, o meio-termo nessa problemática (e preconceituosa) escala que é composto de obras que podem ser inteligentes, mas nunca serão chamadas de Grande Literatura.

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Em um debate organizado pelo Itaú Cultural intitulado Encontros de interrogação, o veterano escritor João Silvério Trevisan, quando indagado sobre a relação entre escrever e narrar, discorreu sobre uma crise de representação pela qual passamos e sobre a busca pela forma ideal de dar conta de nossa realidade complexa e fragmentada. O autor de Rei do cheiro também alertou que estava acontecendo um retorno aos modos tradicionais e realistas de narrar: alguns escritores, em pleno século XXI, voltavam a simplesmente contar histórias.

Embora seja possível apontar muitos contraexemplos para a tendência sinalizada por Trevisan, como Ricardo Piglia, Jonathan Safran Foer e J.M. Coetzee, a ficção de Lehane talvez se encaixe muito bem na teoria de Trevisan. Aí, você, leitor, pode se levantar e dizer: OK, OK, mas Lehane é um escritor policial, ele trabalha dentro de um gênero bastante delimitado. E eu, que estou tentando pensar a fundo esse assunto, coçaria a cabeça e recordaria dois livros de contos que li recentemente: Amor e obstáculos, do bósnio Aleksandar Hemon, e Tudo destruído, tudo queimado, do norte-americano Wells Tower. Livros acessíveis, sem grandes invenciones de linguagem, que se contentam em contar uma boa história.

Tanto Hemon (que, apesar de bósnio, escreve em inglês) quanto Tower publicam com frequência nas mais prestigiosas revistas literárias The New Yorker e Granta. Ambos criam enredos com personagens críveis e fazem o humor brotar de situações inesperadas. É mais ou menos por aí que terminam suas semelhanças.

Categorizar Amor e obstáculos como um livro de contos é complicado. Todos os textos ali reunidos são narrados pelo mesmo personagem, um escritor bósnio que, como o próprio Hemon, mudou-se para os Estados Unidos e não pôde voltar ao seu país natal. Na ausência de uma trama unificadora, Amor e obstáculos pode ser lido como um “romance episódico”, onde cada conto é um capítulo que salta alguns anos e narra uma história sem relação direta com a anterior. A opção por considerar o livro um volume de contos talvez derive do fato de que muitos textos foram publicados separadamente na The New Yorker.

O protagonista de Hemon é um aspirante a escritor (que, ao final do livro, já é um escritor “de verdade”) obcecado por Joseph Conrad, em uma perene busca por aventuras. As aventuras, no entanto, revelam-se geralmente decepcionantes, como se o narrador de Hemon fosse um Huckleberry Finn frustrado. E é colecionando fracassos que o protagonista cresce e se desenvolve, fazendo de Amor e obstáculos uma espécie de “livro de contos de formação”. A questão da identidade, como era de se esperar em um livro de um bósnio escrito em inglês, aparece, mas geralmente por um viés irônico. O protagonista de Hemon vive cercado de pessoas que tentam extrair algum significado profundo da sua experiência de exílio nos Estados Unidos. No entanto, o próprio personagem encara essa crise de identidade com um cinismo desconfiado.

As histórias de Tudo destruído, tudo queimado, de Wells Tower, também operam sob o registro da desilusão e do cinismo. No caso de Tower, porém, isso está vinculado aos relacionamentos humanos. Os personagens nunca são pessoas virtuosas: demonstram ganância, egoísmo, inveja. São figuras movidas por sentimentos mesquinhos e, apesar disso, despertam pena e compaixão. Maridos abandonados e rancorosos; filhos que não sabem como lidar com o pai doente; irmãos que nutrem uma forte rivalidade. Tudo destruído, tudo queimado lembra, em muitos aspectos, Iniciantes, de Raymond Carver, só que de modo muito mais prolixo. Carver, mesmo sem os cortes brutais de seu editor Gordon Lish, era muito mais direto que Wells Tower, um autor que prefere construir pouco a pouco os seus dramas.

Os dois livros se configuram naquilo que João Silvério Trevisan se referiu como tendência do novo século: livros que retornam ao prazer de contar histórias e se contentam com isso. São obras focadas no storytelling (mais uma palavra que não tem um equivalente adequado em português). Ambos apresentam um invejável domínio técnico, e são exemplares em sua construção de personagens e conduções de trama. Porém, não vão adiante, não arriscam, não dão grandes saltos.

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Vou falar algo que pode soar curioso e que talvez não passe de uma idiossincrasia minha enquanto leitor que também escreve ficção ocasionalmente. É o seguinte: acho vários livros considerados “inovadores”, “herméticos”, “complexos”, “radicais” bastante fáceis de serem analisados, enquanto considero obras como Naquele dia, de Lehane, e os livros de Tower e Hemon, muito mais complicados.

Sim, é claro que Ulisses, de James Joyce, e O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, são obras que exigem muita atenção e que não atingem o idealizado “leitor comum”. Mas, ao mesmo tempo, é um tanto fácil reconhecer certas estratégias narrativas e destrinchar alguns dos mecanismos internos (roubando um termo de Coetzee) do funcionamento daquela ficção. “Este capítulo é narrado em primeira pessoa, este outro avança duas horas e imita o funcionamento de desenhos animados”. Consigo esquartejar um livro do Pynchon com mais facilidade do que um livro comportado, realista.

Recentemente li The sense of an ending, de Julian Barnes, e fiquei impressionadíssimo. Embora Barnes nunca possa ser qualificado de middlebrow, ele pratica uma escrita de aparência enganosamente transparente. É um escritor elegante, como Lehane, Tower e Hemon. Ele esconde os mecanismos da ficção, não explicita as vigas e os pilares que estruturam o livro. Já a ficção dita “experimental”, como é o caso de Pynchon ou, lembrando agora, de Cloud Atlas, de David Mitchell, estão, em sua radicalidade, sempre gritando: “Olhe a minha forma! Veja como sou construído!”.

Não se trata, de modo algum, de uma questão de valoração. Se alguém me perguntasse qual autor prefiro, Pynchon ou Lehane, ficaria com o primeiro. Ainda assim, não consigo deixar de ler Lehane (e Barnes, Hemon e Tower) com algum espanto. “Como vocês fizeram esse livro? Por que ele me deixou tão emocionado?”

O diagnóstico de João Silvério Trevisan acerca da crise da representação nos dias de hoje parece acertada. Em tempos complexos e fragmentados, livros que retornam a narrativas realistas podem soar retrógrados. No entanto, cabe a pergunta: será que obras como a de Lehane, Hemon e Tower não representam uma espécie de vanguarda? Em dias caóticos, recuperar o prazer de narrar e buscar uma conexão sincera e direta com o leitor pode muito bem ser um dos caminhos da literatura do futuro. Todavia, pensar em como será esta literatura vindoura não passa de um trabalho de especulação. Por enquanto, fiquemos com o que está a nossa disposição: uma literatura contemporânea pluralista, com espaço para o experimental e para o storytelling elegante.

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