Menos quem não é

Colunistas

20.10.15

O Brasil é, há pelo menos 15 anos, desde o início do século XXI, destino preferencial de imigrantes vindos dos países africanos de língua portuguesa e do caribenho Haiti. As taxas de crescimento de registro de imigrantes destes países cresceram, em 10 anos, 2000%.

São quase todos negros, quase todos pobres, e provavelmente por isso formam um fenômeno invisível na sociedade. Embora tenham vindo atrás de crescimento econômico (a expansão da imigração coincide com o destaque do país no grupo dos Brics) e oportunidades de estudo (há programas de intercâmbio específicos nas universidades públicas para acolher jovens africanos lusófonos), encontram o mesmo país racista de sempre, com um agravante: descobriram que também somos xenófobos.

Foi para eles que o Ministério da Justiça criou a campanha “Eu também sou imigrante”, ferozmente criticada por exibir a foto de um jovem negro – Matheus Gomes, 18 anos –, neto de angolano e bisneto de ganês. A imagem motivou uma justificada onda de protestos dos ativistas de movimentos negros, que consideraram uma violência contra o passado escravocrata que trouxe negros como mercadoria. Escravos não foram imigrantes, foram mão de obra a serviço da expansão do capitalismo europeu, da violência da colonização e da exploração.

Em que pese o valor de todas as críticas, há aqui um fato novo a ser considerado: a sociedade brasileira está recebendo centenas de jovens negros imigrantes, que chegam de países como Haiti, Angola e Moçambique, e enfrentam racismo e xenofobia.

(Reprodução/Facebook)

Visto por este aspecto, a campanha acerta exatamente ao escolher um jovem negro. O problema se agrava quando se encontram o jovem negro imigrante, alvo de racismo e xenofobia, com o jovem negro pobre, vítima de racismo, discriminação e violência policial, bisneto do passado escravocrata cujas feridas sociais ainda não foram curadas. Vista por este aspecto, a campanha erra exatamente ao escolher um jovem negro sob o slogan “somos todos imigrantes”. Não, não somos.

Mas entre o acerto e o erro, há muitas questões políticas, ideológicas e culturais envolvidas. O racismo brasileiro separa e esquadrinha os corpos. O ideal de nariz fino para os brancos foi construído para se diferenciar do “nariz grosso”, a bunda empinada da mulata sestrosa de sexualidade quente se contrapõe à burguesa branca e supostamente magra, o lábio grosso, a cor da palma da mão e da sola do pé, o tipo de pelos púbicos somam-se aos inúmeros indicadores de negritude com os quais o racismo brasileiro marca os corpos. Apesar de tantos marcadores de diferença em relação aos brancos, ou talvez por causa deles, o racismo brasileiro fez desaparecer as diferenças entre os negros.

A África – esse imenso continente que entrou nos nossos livros de história como uma totalidade – tem diferentes negritudes, países, nacionalidades. Enquanto os escravos que vieram para o Brasil tiveram essas diferenças ignoradas em função da comparação com o padrão branco europeu e a serviço de um discurso que valorizava a mestiçagem como traço de assimilação natural na cultura, os negros que chegam hoje têm nacionalidade, história, cultura, traços distintivos entre si, e não podem ser subsumidos à categoria “escravo africano”.

Some-se aos imigrantes o crescimento de refugiados – o Brasil abriga hoje 7.289 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades, principalmente vindos de país como Síria, Colômbia, Angola e Congo – e de repente estamos às voltas com um tipo de preconceito que considerávamos existir apenas na Europa ou nos EUA, onde fronteiras fechadas explicitam a xenofobia.

Se hoje existem jovens negros de diversos países da África escolhendo viver no Brasil, e se estes jovens enfrentam nosso racismo histórico e nossa xenofobia, passa a ser preciso olhar para eles como estrangeiros vítimas de duplo preconceito. Se a reparação pelos crimes da escravidão nunca vier (e não virá, porque são irreparáveis), aos jovens negros que estão chegando talvez se possa vir a dizer que no Brasil todo mundo é estrangeiro, menos quem não é, para usar em forma reversa a famosa frase do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (“No Brasil todo mundo é índio, menos quem não é”).

 

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