O fim do mundo real e virtual da Leonardo da Vinci

Literatura

29.05.15

Aconteceu o infelizmente inevitável: a Livraria Leonardo da Vinci anunciou nesta quarta (27) que fechará suas portas. Milena Duchiade, que bravamente defendeu a livraria fundada há 63 anos por seu pai e tocada por décadas por Vanna Piraccini, sua mãe, disse ao “Globo” que o “modelo de negócio” tornou-se “inviável”. No mundo físico, a Da Vinci estaria perdendo a parada, segundo ela, para livrarias que mantêm cafés, vendem papelaria e obras populares e, também, para o caos em que o Centro do Rio transformou-se com as várias obras simultâneas realizadas na cidade. No mundo virtual, o vilão, ainda que não nomeado, tem nome e endereço, a Amazon.com, com a facilidade de importação (o forte da Da Vinci) e preço mais baixo.

Discordo que o modelo físico tenha atrapalhado a livraria. Seus clientes mais fiéis jamais dariam bola para capuccinos e muito menos para qualquer tipo de best-seller. Mas poucos deles, tarados por livro, resistiriam – como, ao que parece, não resistiram – ao apelo de catálogos inteiros ao alcance dos dedos, com livros chegando às suas mãos em pouco tempo e por um preço razoável. O que se ganha nessas livrarias infinitas da web todo o mundo está cansado de saber. Mas é bom lembrar o que se perde. E não é pouco, como nos lembra essa notícia.

Um dos salões da Livraria Leonardo da Vinci, no Rio de Janeiro

Assim como quase todo mundo que se formou intelectualmente no Rio de Janeiro até meados dos anos 1990, fui cliente da livraria. Cliente de carteirinha, ou melhor, titular de uma conta aberta com a garantia de minha palavra. Quando fazia uma compra, dona Vanna dividia o valor por três e eu dava um cheque com a primeira parcela. No mês seguinte, no dia de pagar a segunda prestação, ia lá, comprava mais coisa, redividia tudo por três e assim por diante. Numa época em que as bolsas de mestrado da Capes atrasavam, dona Vanna esperava pacientemente para receber. Foi assim que muita coisa importante que tenho até hoje veio do subsolo do Marquês do Herval, o edifício modernista assinado pelos irmãos Roberto e hoje desfigurado, plantado na esquina da Rio Branco com a Almirante Barroso.

Quando viajei para o exterior pela primeira vez, grana curtíssima, me surpreendi, ou melhor, não me surpreendi ao ver as bancadas de La Hune e da P.U.F., a Presses Universitaires de France: duas das mais importantes livrarias de Paris eram mais parecidas do que diferentes do que eu sempre vira na Da Vinci, que oferecia livros do mundo inteiro, mas tinha um notável charme francófilo. Um charme que não se sustentou nem em seu país de origem: a P.U.F. fechou as portas há dez anos, e a La Hune, já expulsa pela Louis Vuitton de seu lugar original, sucumbe agora aos caríssimos aluguéis de Saint Germain e anuncia o fechamento para os próximos meses. Isso num país que tem mecanismos para defesa de livreiros como, por exemplo, a política do preço fixo.

O papel da Leonardo Da Vinci sempre foi civilizador. Servia para mostrar que este fim de mundo não tinha que se conformar em sê-lo. Atendia Golbery do Couto e Silva e Carlos Drummond de Andrade, aos professores e seus alunos. Todos os seus funcionários sabiam o que estavam vendendo, eram interlocutores de seus clientes. O imenso estoque, que se tornou um de seus problemas, parecia nos lembrar de nossa ignorância e, também, do quanto ainda restava descobrir. De alguma forma, aquelas salas forradas de livros eram uma promessa de futuro  – ou ainda uma visão borgiana do paraíso.

Tenho que dizer que há muito deixei de comprar lá. A questão premente era física – trabalhei muitos anos num eixo que sequer passava perto do Centro – mas também virtual: fui, desde o início, um viciado na Amazon, e neste, como em todos os vícios, o prazer é evidente e os prejuízos, insidiosos. No mundo virtual, sempre se pagará menos pelo que não é tão bom e mais pelo que é melhor. E cada vez mais pelo que é melhor, até que o melhor não esteja mais disponível por nenhum preço, porque se torna insustentável nos padrões de lucro cada vez mais altos do mercado, o mesmo que oferece o pior por menos, invocando para isso as inexoráveis leis de oferta e procura.

Discordo, no entanto, de que os que deixaram de comprar na Da Vinci sejam co-responsáveis por seu fechamento. Isso é tão verdade quanto atribuir ao usuário de droga a responsabilidade pelo tráfico – esta bela e popular tese feita na medida para despertar muxoxos admirativos no senso comum, eivada que está por maniqueísmo e baixo teor crítico. O fim desse modelo de livraria é, isto sim, resultado do antiintelectualismo fincado no mercado editorial, que se alastrou por toda a cadeia de produção do livro. No raciocínio que o sustenta, o que serve ou não serve, o que é bom ou ruim, é determinado pelo que pode ser convertido em lucro em níveis cada vez mais altos, já que tudo, de livro a notícia, é tratado como “conteúdo”. E, definitivamente, o lucro que se obtém com a venda de livros de qualidade ou de referência não fala ao bolso de quem comanda o mercado e tampouco flexibiliza, por suas próprias qualidades, as estruturas que o sustentam.

Há, no entanto, um fator que não deve ser negligenciado nesse episódio melancólico, nessa confusão de mundos reais e virtuais. O fim da Da Vinci, que não despertou, até o momento em que escrevo, nenhum pronunciamento oficial ou esboço de qualquer iniciativa, é mais um sinal de que o Rio de Janeiro que se está construindo sob o rótulo de Cidade Olímpica é uma cidade que não coincide com ela mesma. Ou melhor, uma cidade virtual na qual o mundo real, como aquele comandado por dona Vanna e Milena, não tem mesmo vez.  

 

 

 

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