Mi voz soy yo

Música

09.05.16

Conheça a estrela dos dois próximos programas da série A voz humana, idealizada e apresentada pelo poeta Eucanaã Ferraz na Rádio Batuta do IMS.

“Mi voz soy yo”, assim definiu-se a dona da voz, Fátima Miranda. A cantora e compositora espanhola se expressa por meio de diferentes linguagens: canto, fala, instrumentos, performance, gesto, figurino, mas é na própria voz que encontra sua expressão por excelência e um lugar de experimentação radical. Suas peças são, na maioria, inteiramente à capela, gravadas com a sobreposição de várias pistas. Como artista solo, registrou em CD os álbuns Las voces de la voz (1991), Concierto en canto (1994) e ArteSonado (2000).

Sua obra insere-se no gênero que a pesquisadora alemã Theda Weber-Lucks classifica como vocal performance art, nascido como um dos desdobramentos do movimento sessentista Fluxus e consolidado por uma geração brilhante de artistas da voz (predominantemente mulheres) como Cathy Berberian, Meredith Monk, Joan La Barbara e Laurie Anderson, mas também Demetrio Stratos e David Moss. Eles diminuíram a distância entre composição e execução ao escreverem peças vocais sofisticadas que já não eram uma indeterminação à espera de algum cantor para concretizá-la. Suas composições eram talhadas para si mesmos, nasciam e concluíam-se simultâneas ao canto, sob íntima sondagem das próprias capacidades vocais.

Para tais artistas, não é apenas a emissão vocal em si que está em jogo no cantar, mas são constitutivos da forma do canto as próprias regras da performance: “O tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público”, como sumarizou o crítico e historiador suíço Paul Zumthor.

Nascida em Salamanca, Fátima Miranda licenciou-se em História da Arte em Madri, especializou-se em Arte Contemporânea e publicou dois livros sobre arquitetura e urbanismo. Seus estudos apontavam para a formação de uma pesquisadora, não de uma musicista. E foi ainda sem formação musical que, em 1979, integrou, a convite do compositor espanhol Llorenç Barber, o Taller de Música Mundana, grupo que experimentava a improvisação, o happening, e extraía sons de materiais como papel, água e pedras.

Em 1986 formou com Llorenç Barber e Bartolomé Ferrando, o Flatus Vocis Trío, grupo que usava exclusivamente a fala como material sonoro, operando no exato intermédio entre música e poesia fonética.

Foi só durante os anos 1980 que Fátima começou a suspeitar da capacidade de sua voz e de seu potencial como solista. Ao longo dessa década, enquanto trabalhava como diretora da fonoteca da Universidade Complutense de Madrid, direcionou suas pesquisas à música e, em especial, à voz. Estudou intensivamente o bel canto, e também solfejo, percussão e saxofone alto. Em Paris aprendeu o canto tradicional japonês e também o canto mongol, com o qual passou a dominar a técnica da diplofonia, em que a voz emite duas notas ao mesmo tempo. Em 1989 morou na Índia e estudou o canto secular dhrupad com membros da eminente família Dagar, experiência da qual legou muito mais que a emissão e a escuta sutil e profunda do canto microtonal.

Quanto a isso, cabe observar que a música oriental é essencialmente monofônica, ou seja, opera sobre um único tom. Nela está abolida a progressão de acordes, pilar central da música ocidental. No canto indiano, por exemplo, dentro de dada escala musical, o intérprete deve expandir as notas, aprofundando a percepção do tom, sendo-lhe dada grande margem para a improvisação e espontaneidade. Tal configuração aparece inteira em boa parte das composições de Miranda (Dhrupad dream, Alankara skin, Diapasión, Palimpsiesta e Repercusiones I), onde suas várias vozes operam basicamente em dois planos. O primeiro é claro, estável, previsível e, por meio da repetição das mesmas poucas notas, compõe uma base tonal permanente para o segundo, em que a voz encontra-se diante de um espaço sem fim, livre para deixar-se avançar indefinidamente em melodias de contornos ornamentais.

Miranda também contempla tradições vocais de sua Espanha e, além da pesquisa étnica, incorpora também tanto a técnica do canto lírico como influência da música popular. Método e estratégia nos deixam ver em Fátima uma acumuladora. Isso, porém, traduz-se, para quem a ouve, nem sempre na impressão de excesso, mas de vastidão. À medida que a escutamos, mais e mais nos deparamos com sonoridades insuspeitadas do canto, fazendo parecer que não há virtude da voz humana que se tenha negado à voz de la Miranda.

Ela parece, além disso, ter certo pudor do exibicionismo e da técnica como fim em si. Para ela, a apreensão de novos recursos deve levar à naturalização deles: conforme Llorenç Barber, o que vem à superfície é só resultado, e o processo, por árduo que tenha sido, é descartado. A assimilação das técnicas colhidas nos cantos étnicos é de tal modo hábil que por vezes esquecemos que estamos diante de uma autora. Seu cantar nos remete a um cantar primitivo: não de um indivíduo, mas de povos. Daí a curiosa impressão de familiaridade que um ouvinte de primeira viagem poderá ter diante de peças estranhas e obscuras, como a magnífica A inciertas edades.

Sua verve excessiva é culminante em Repercusiones I. Aqui, mais é mais. Fátima recorre à tradição do canto yodel e, enquanto vozes vigorosamente histriônicas exclamam frases extraídas de anúncios publicitários, ela iodeleia. A melodia natural do idioma colore, em primeiro plano, a textura da música. De certo modo faz lembrar as cenas de abrasada algaravia dos filmes de Almodóvar. A bufonaria da performer também está em El Principio del Fin, Tala Tala e nas versões (ou “perVersiones”) para Chega de Saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Walk on the Wild Side (Lou Reed) e Cry Me a River (Arthur Hamilton).

A obra de Fátima percorre, de extremo a extremo, a fronteira entre o canto e a fala. Tal fronteira poderia ser categorizada em três principais níveis verbais. O primeiro é a palavra, inteira e nítida. Em algumas poucas composições ouvimos frases inteiras. Nesses casos, em que a palavra chega a completar-se, importa menos a informação em si: abre-se um vão entre nome e significado e este, exilado de seu contexto, dilui-se em impressão.

O segundo nível é a sílaba, unidade que intermedeia o fonema e a palavra. Herdeira da poesia fonética, Miranda aponta diferentes usos à sílaba. Em Desasosiego, por exemplo, há um “pa-ra-la-rán” assumindo funções percussivas, enquanto um “aí-aí-aí” define a harmonia. A sílaba também é a linguagem em que Fátima profere vigorosos monólogos (La voz cantante), assemelhados ao mesmo tempo à glossolalia (ou “falar em línguas”) e ao scat singing. Aqui se pode apontar a semelhança com Meredith Monk, que também compõe fraseados impressionantes desse mesmo modo.

Por fim, Fátima também entra na zona do canto puro, em total desvinculação da palavra, onde é possível chegar às regiões mais anárquicas do canto: a voz enquanto voz. Aí se operam não só o abandono da palavra, mas da própria codificação do canto (o canto como conhecemos e que assim nomeamos). Nesse nível, Fátima acusa a natureza corporal da voz: é do corpo — de seus dutos e cavidades — que vêm os suspiros, sopros, estalidos, golpes de glote, gritos, fricções da língua e da mucosa e todas as demais possibilidades. É a voz livre de todo código. Nesse aspecto Miranda irmana-se a ao grande cantor e compositor Demetrio Stratos, cuja obra, embora encurtada por uma morte prematura, levou essa propriedade corporal do canto a um extremo definitivo.

Os três álbuns de Fátima já perfazem uma obra. Sua voz pode interessar não só aos iniciados na música erudita contemporânea ou aos ouvintes de gosto experimental, pois qualquer um que a escute com atenção poderá fruí-la, ora em reconhecimento, ora em espanto. Após audição atenciosa de seus discos, saímos com a desconfiança de que sabemos algo a mais sobre a voz humana.

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