Militância

Colunistas

19.11.14

Por muito tempo, achei que a militância era uma burrice necessária. E que eu não precisava me envolver na luta, enquanto houvesse gente disposta a sujar a mão, lutando pelos meus interesses. Bastava argumentar com o óbvio, que a arte usada como panfleto, propaganda ou veículo para palavras de ordem era uma forma empobrecida de arte, para me sentir justificado.

Há um mês, em Bruxelas, uma cidade que, apesar de tranquila e provinciana em aparência, concentra os conflitos sociais, culturais e raciais mais mesquinhos dos maiores centros do mundo, por pouco não fui atacado ao reagir verbalmente às injúrias de dois rapazes árabes que me tomaram por bode expiatório das suas frustrações pessoais.

Militância LGBT em Paris. A cidade também foi palco de uma manifestação de um milhão de pessoas contrárias ao casamento igualitário em maio de 2013.

Num domingo, às nove da manhã, quando as ruas do centro estavam relativamente vazias e eu caminhava com meu companheiro para a estação central de trens, um dos rapazes começou a nos xingar em inglês. Supondo que éramos gays e que, como gays, não nos restava outra opção, ele gritava: “You gay, suck my dick!”. Ouvi uma vez, duas vezes, três vezes. E aí me irritei.

Para horror de um grupo de turistas americanos acuados na porta de um hotel, gritei de volta: “You’re wrong. I’ll fuck your ass”. Por muito pouco não gritei: “And your mother’s and your sister’s!”. Perplexos com a minha reação inesperada, os dois rapazes hesitaram por um instante antes de investir contra nós. E se não fosse por dois policiais que surgiram de repente (e cuja visão bastou para fazer os dois rapazes bater em retirada), a esta altura seria bem possível que eu ainda estivesse me recuperando em algum hospital belga.

Meu encontro com os dois árabes no centro de Bruxelas só me fez confirmar o que eu já vinha reformulando há alguns anos na minha cabeça: que a militância só parece burra por nos confrontar com um estado de coisas que supomos inconcebível, de tão primário. Ela dá uma concretude incômoda ao que tendemos a tratar como impossibilidade ou como fantasma, por comodidade, porque o problema não nos atinge diretamente. A militância nos confronta com um sentido prático e possível para lidar com o que não queremos ver, porque, se víssemos, não poderíamos ser quem achamos que somos nem continuar agindo como agimos. Ela nos confronta com a nossa autoimagem, com o nosso próprio primarismo e com a nossa própria grosseria dissimulada. É lógico que o sistema de cotas para combater o racismo e a desigualdade é, em princípio, muito primário, mas por que as mesmas pessoas educadas que se levantaram enfurecidas contra a imperfeição do sistema de cotas, como se vivessem num mundo ideal que a medida imperfeita viesse macular, nunca se manifestaram com a mesma virulência contra as desigualdades sociais?

A militância nos faz ver que vivemos num mundo onde não queremos estar, porque ele nos compromete. Isso é desagradável sobretudo porque esse mundo está sempre aquém da nossa inteligência e da nossa suposta sofisticação. Como gente inteligente e sofisticada pode conviver com tais níveis de preconceito, discriminação, desigualdade e injustiça social? Mais que isso, a militância mostra que a batalha nunca está totalmente ganha, e o exemplo da homofobia dos dois rapazes na Bélgica, um país onde vigoram algumas das leis mais modernas e liberais do mundo no que se refere aos direitos civis, me parece muito claro. Quanto maior a visibilidade das minorias, mais necessidade haverá de protegê-las da violência, por leis aparentemente primárias que nos mostram, ao contrário do que alguns argumentam, que a simples visibilidade não é suficiente nem garantia de inserção em uma sociedade mais justa (basta ver a força surpreendente do reacionarismo católico na França, um país em princípio moderno, laico e liberal). Ao assegurar por lei os direitos das minorias, a democracia apenas garante uma sociedade melhor e mais justa para todos.

Meu médico me disse outro dia que o número de jovens homossexuais soropositivos vem crescendo de modo exponencial nos últimos anos. E que, no Brasil pelo menos, se já não há campanha pública de conscientização sobre o sexo seguro, isso se deve em grande parte às bancadas religiosas, católica e evangélica, que, ao que tudo indica, só tendem a aumentar o alcance da sua influência política. Como também já não há militância, eleitores que não se sentem diretamente concernidos pelas reivindicações e pelos problemas supostamente restritos às minorias (entre eles, muita gente que antes votava à esquerda e até mesmo gays) passaram a achar que a influência da religião na política é um mal menor, contornável e sem maiores consequências para a sociedade.

Enquanto, no ano passado, a população das grandes cidades brasileiras saía às ruas em massa contra um inimigo tão abrangente, consensual (ao menos da boca pra fora) e difuso como a corrupção, apenas algumas centenas de pessoas compareceram à manifestação convocada no centro de São Paulo para pedir a destituição do pastor Marco Feliciano do cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos e das Minorias da Câmara, uma meta bem mais exequível a curto prazo do que o fim da corrupção, mas que nos confrontava com a nossa própria miséria. Pedir a destituição de Feliciano era se rebaixar ao absurdo, ao reconhecimento do país que o nomeou para presidente de uma comissão de direitos humanos, era sujar as mãos com uma realidade inconcebivelmente imperfeita e atrasada. Era demasiado pequeno para as nossas ambições e para a nossa autoimagem, um golpe demasiado baixo contra a nossa inteligência e contra a nossa suposta modernidade.

, ,