Mostra de São Paulo: notas apressadas sobre a beleza no cinema

No cinema

27.10.14

Encadear ao longo de vários dias os filmes mais diversos, vindos de todas as partes do mundo, e descobrir diálogos subterrâneos e misteriosos entre eles é um dos encantos de um evento como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Pode-se observar, por exemplo, como cineastas muito distantes uns dos outros encaram o amor, ou a violência, a solidão, os atritos sociais, a natureza, ou como interrogam o cosmos, como questionam a própria linguagem, como forjam um meio pessoal de expressão.

Na mostra deste ano, três filmes vindos do norte do planeta, ambientados em deslumbrantes paisagens nevadas, me fizeram pensar um pouco sobre a beleza no cinema. O que é “um filme bonito”, frase com que tantas vezes nos referimos ao que acabamos de assistir?

O reino da beleza (do canadense Denys Arcand) é, como seu título promete, um filme “bonito”. Mas a beleza que há nele é, de certa forma, pré-cinematográfica, exterior ao filme. Vistas majestosas de montanhas, praias, bosques de coníferas, lagos congelados, construções magníficas (o protagonista é arquiteto), pessoas lindas – parece não haver um grão de feiura em toda a tela.

Tudo isso, entretanto, é como que apenas o cenário da história que se conta: no fundo, um drama convencional de adultério, depressão e culpa. Há poucos momentos em que é a intervenção dos criadores – o posicionamento e os movimentos da câmera, a montagem, a interação entre os atores e o espaço, a relação imagem-som – que produz algo a que podemos chamar de belo.

Um desses momentos de exceção é aquele em que uma personagem, tomada pela angústia, quase se joga de um teleférico no alto de uma montanha. É um gesto abrupto, inesperado, que infunde de repente o drama numa paisagem até então plácida. No mais, é como se toda a beleza que aparece no filme já estivesse lá, esperando por alguém competente o bastante para meramente registrá-la. E essa competência, ninguém há de negar, os realizadores detêm.

Deslocamento e desconforto

Bem diverso é o caso de Força maior (ou Turist), do sueco Ruben Ostlund, que leva uma família sueca a uma estação de esqui nos Alpes franceses. Desde as primeiras imagens, o que está em foco e em questão é a relação dos personagens com o espaço. Vemos os quatro membros da família (pai, mãe e um casal de filhos pequenos) serem dispostos de diferentes maneiras diante da câmera de um fotógrafo de turistas. O desconforto deles naquela paisagem nos acompanhará ao longo de toda a sessão.

O enredo de Força maior é contado em grande parte pela luz, ou pela falta dela. À noite, numa penumbra monocromática, explode de quando em quando uma bola de fogo em pontos distintos da montanha, produzindo pequenas avalanches controladas e, ao que parece, necessárias para manter as encostas boas para esquiar.

Uma dessas avalanches provocadas aparentemente sai de controle e causa pânico entre comensais (incluindo a família protagonista) no terraço de um restaurante panorâmico. É o momento mais espetacular do filme e, ao mesmo tempo, o centro de seu drama. Começa com uma pequena nuvem de neve se aproximando. De início o pai da família sueca, Tomas  (Johannes Kuhnke), tranquiliza os filhos e saca seu celular para filmar a avalanche. Em pouco tempo, porém, a nuvem se transforma numa ameaçadora parede branca e todos se apavoram, incluindo Tomas, que corre para longe, deixando para trás a mulher e os filhos. A tela fica toda branca. Quando se dissipa a nuvem de neve, todos saem de baixo das mesas, espanam as roupas, voltam aos seus lugares. Ninguém se feriu, mas a relação de Tomas com a família não voltará a ser a mesma.

Cena de Força maior

Durante a maior parte da cena a câmera ficou parada, no mesmo ponto de vista. Mas um mundo de coisas aconteceu dentro do quadro. Em poucos minutos, talvez segundos, tudo mudou: a relação dos indivíduos com a paisagem, dos indivíduos entre si e, mais profundamente, dos indivíduos consigo mesmos. Como observou numa conversa o cineasta Kleber Mendonça, há Bergman em algum lugar de Força maior. Talvez na densidade de um drama íntimo e universal que faz da paisagem física uma projeção dos tormentos humanos e do rosto humano uma paisagem desolada e indecifrável.

Gangues na neve

Outro nórdico, o norueguês Hans Petter Moland, também valoriza ao máximo as possibilidades dramáticas e estéticas da luz e da neve no surpreendente O cidadão do ano. É, em seu entrecho, um filme de gângsteres, mas o que o torna original, antes de tudo, é o solitário ofício do protagonista Nils (Stellan Skarsgard, de Ninfomaníaca), competente operador de um trator de remover neve nas montanhas da Noruega, recentemente eleito “cidadão do ano”.

Quando seu filho é morto por traficantes de cocaína, Nils se converte num implacável (porém discreto e silencioso) vingador, causando uma verdadeira razia nas hostes da máfia local e, de quebra, provocando uma guerra entre esta e a máfia sérvia (cujo líder é encarnado por Bruno Ganz).

Histórias de cidadãos pacatos convertidos em justiceiros não são novidade, mas aqui o que interessa é a integração entre a profissão do protagonista, além de seu conhecimento profundo do meio físico, e sua ação vingadora. O contraste entre sua competência técnica e sua inépcia nos meandros do crime faz dele um outsider que desconcerta a lógica das gangues e semeia a confusão.

O uso das máquinas de remoção da neve para outros fins produz cenas que ficam impregnadas na retina, para além da questionável violência explícita que tinge o branco de vermelho a toda hora. A montanha de neve sendo rasgada à noite por uma máquina que é a única fonte de luz na escuridão, e que lança poeira de neve no ar como se fosse a fumaça de uma locomotiva, é uma dessas imagens insólitas que só o cinema pode produzir e que afetam nossa percepção do mundo.

O resto é beleza de cartão postal ou da National Geographic.

Paixão mórbida

E há também a arte de extrair ou revelar a beleza do feio, do sórdido, do abjeto. É o caso de Paixão mórbida (1964), um dos três filmes do japonês Noboru Nakamura programados na mostra de São Paulo. Trata-se, em resumo, da história de uma garota pobre de Tóquio, Yoshie (Miyuki Kuwano), que se envolve com um bandidinho da Yakuza e vira prostituta. A narrativa alterna dois tempos: o presente da moça, já desencantada, e os anos de sua (de)formação.

Ambientado em becos de prostituição, bares suspeitos e cassinos clandestinos, o filme plasma em cores intensas, a um passo da saturação, o inferno de seus personagens, em especial de Yoshie, acompanhada de perto, com a câmera sempre em ligeiro contre-plongée, como que captando seu movimento de enfrentar a custo o mundo de humilhação e violência que a cerca.

Chama a atenção o modo de conexão entre as sequências. Quando se trata de mudar de cena dentro do mesmo tempo narrativo (o presente ou o passado), Nakamura recorre aos pillow shots (planos de ligação) tornados célebres por Ozu. Só que, em vez dos plácidos cenários domésticos ou de bairros periféricos usados preferencialmente pelo mestre, o que vemos aqui são letreiros em néon de bares e boates, fora de foco e com cores borradas. Um mundo equívoco, embriagado.

Quando a mudança é de tempo narrativo, a imagem dissolve-se em azul, como se o transcorrer dos anos, ou a consciência dele, fosse uma espécie de bálsamo a atenuar a aspereza do cotidiano. Seria preciso rever Paixão mórbida, mas desconfio que haja no seu jogo de cores e luzes toda uma filosofia do tempo e seus efeitos.

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