Neopopulismo

Colunistas

28.10.15

Quando li pela primeira vez Lições de literatura, de Vladimir Nabokov, que agora sai no Brasil pela editora Três Estrelas, com tradução de Jorio Dauster, era o início da febre do multiculturalismo e tudo indicava que a literatura estava condenada ao relato da identidade e da experiência mais ou menos exótica dos autores. Uma passagem do livro me marcou especialmente, como argumento contra os arautos do relato da experiência: “A literatura não nasceu no dia em que um menino chegou correndo e gritando ‘lobo, lobo’, vindo de um vale neandertal com um grande lobo cinzento em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino chegou gritando ‘lobo, lobo’, e não havia nenhum lobo atrás dele”.

De lá para cá, as coisas mudaram um pouco, o mercado de livros cresceu muito, empurrando a ficção literária para os limites da hipertrofia. E no lugar da redução ao relato da experiência identitária do autor, surgiu uma nova ameaça que já vai tomando contornos hegemônicos de academicismo, só que fora da academia: um conservadorismo literário, consequência da falência da crítica, substituída pela autoridade da opinião do leitor. Nesse novo populismo impulsionado pela internet, a naturalidade do lugar-comum subjuga o pensamento crítico, sob a batuta de oportunistas que se fazem passar por justiceiros e representantes da voz e do gosto do leitor contra a arbitrariedade das exceções, contra o elitismo de supostas igrejas, contra tudo o que sai da linha e parece incompreensível, demasiado irregular, estranho ou extraordinário. O resultado é menos democrático do que parece: uma impostura e um empobrecimento da democracia, confundida com a norma da maioria, servindo-se da chancela da reprodução dos preconceitos, das convenções e do senso comum como critérios objetivos para alardear o que é bom e o que é ruim.

Nessas circunstâncias, salta aos olhos outra passagem do livro de Nabokov, que reúne uma seleção de suas aulas ao longo de quase vinte anos (entre 1941 e 1958) nas universidades de Wellesley e Cornell: “É instrutivo pensar que não há uma única pessoa nesta sala, ou mesmo em qualquer aposento do mundo, que, em certo ponto bem escolhido no espaço-tempo histórico, não será assassinada ali mesmo, aqui e agora, por uma maioria que se crê dona do bom senso e sente um ódio que é justificado por seus padrões morais. (…) E quanto mais brilhante o homem, quanto mais incomum, mais próximo ele estará do paredão. A estranheza e o perigo sempre andam juntos. (…) Tratemos (…) de louvar os seres não convencionais porque, na evolução natural das coisas, o macaco talvez não houvesse se transformado no homem caso não tivesse aparecido um ser estranho na família”.

A grandeza do pensamento crítico está no risco que ele assume para dizer o que muitas vezes contraria o senso comum (e o que o leitor quer ler ou ouvir). É o contrário do arremedo de crítica que pontifica na internet, ajustando o alcance e a correspondência de suas opiniões às convenções da hora, dançando conforme a música, ecoando a inércia do gosto. Para essa crítica, um romance pode ser chato, pode não convencer, pode ter personagens que não são de carne e osso etc. Mas ela nunca reconhecerá o risco de uma forma singular de pensamento, de uma experiência incomum, não convencional. Porque, para essa concepção empobrecida da crítica, a literatura é antes de tudo um produto. E o crítico, um agente na defesa dos direitos do consumidor.

Uma amiga recém-chegada de Frankfurt traz novas de um amigo editor, contratado por uma prestigiosa editora inglesa. Segundo ele, o que antes estava implícito, agora é anunciado aos editores, diariamente e com todas as letras: seus salários dependem do sucesso de vendas dos livros que vocês lançam e dos autores que vocês contratam. Sem resultados excepcionais de público, não há editor que permaneça empregado, nem se descobrir o novo Kafka ou o novo Joyce ou o novo Beckett. O novo Kafka, o novo Joyce ou o novo Beckett só serão o novo Kafka, o novo Joyce e o novo Beckett se venderem o suficiente para pagar os salários de seus editores.

A lógica, cristalina e irrefutável, já vinha sendo aplicada há séculos e com relativo sucesso a produtos tão diversos quanto tomates, automóveis e armas. Na literatura, entretanto, havia um certo pudor. Já não há. Antes, um best-seller era suficiente para pagar o prejuízo dos livros de exceção que não vendiam mas que faziam o nome de uma editora. Isso já não é possível devido às proporções que o mercado editorial tomou. Um círculo vicioso foi criado no qual a literatura está atrelada às vendas e, em consequência, ao gosto geral. E é mais do que natural que, nessas circunstâncias, a crítica que contraria os preconceitos, as convenções ou o gosto do leitor já não seja bem-vinda.

Mais preocupado com Kafka e Joyce do que com editores e vendas, Nabokov imagina as condições ideais para quem enfim se senta para escrever um livro: “Sua caneta está adequadamente cheia, a casa silenciosa, o fumo e os fósforos reunidos, a noite apenas no começo… e o deixaremos nessa situação agradável ao sairmos pé ante pé; fechada a porta, trataremos de afastar da casa, com toda firmeza, o cruel monstro do bom senso [common sense] que vem se arrastando pelos degraus para dizer em voz chorosa que o livro não está destinado ao grande público, que o livro nunca, nunca vai… E nesse instante, antes que ele deixe escapar a palavra v-e-n-d-e-r, o falso bom senso deve ser morto a tiros”.

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