No país das fraturas expostas

Séries

13.06.14

Em São Paulo, policiais militares disparam spray de pimenta nos olhos de um manifestante 

Primeiro, foi o “imagina na Copa”, que evoluiu para o “não vai ter Copa”. Agora estamos em plena Copa, no olho do furacão, e não há mais o que imaginar. Mas há tanto para ver, tantos signos contraditórios pulsando à nossa volta, que é difícil decodificá-los, e impossível dar-lhes um sentido coerente e unívoco.

Já que se fala tanto na “imagem do Brasil”, o que se viu no Itaquerão, na abertura do Mundial, foi um país múltiplo, contraditório, cheio de arestas. O futebol, que já foi um dos cimentos de uma certa identidade nacional, serve agora para expor nossas fraturas. Fraturas sociais, políticas, econômicas, culturais.

Se para nós não é fácil compreender este mostrengo gigantesco e intrigante, o que dirá para um estrangeiro? Como explicar a ele, por exemplo, que a presidente do país, vaiada e insultada no estádio, é a mesma que lidera por larga margem as pesquisas de intenção de voto? Como justificar tanta polícia para reprimir tão poucos manifestantes? Como entender que o país que faz do carnaval um dos grandes espetáculos da terra produza uma festa de abertura tão chocha e sem vibração?

Se o Brasil não é para principiantes, como reza a célebre frase de Tom Jobim, a intervenção da Fifa, criando quase um Estado dentro do Estado, só fez complicar ainda mais as coisas. 

Futebol bipolar

Mas vamos ao futebol, que afinal de contas é o dínamo que põe em movimento toda essa maquinaria descomunal. O Brasil venceu por um bom placar um adversário difícil, mas também dentro de campo nos mostramos bipolares, espasmódicos, erráticos, em comparação com uma Croácia mais equilibrada, tática e emocionalmente.

Os próprios jogadores brasileiros admitiram, ao final, que o placar não refletiu a correlação de forças da partida. Nada mais natural: mesmo se não houvesse outros fatores, o simples fato de ser jogado com os pés já torna o futebol o mais imprevisível dos esportes, aquele em que o acaso assume às vezes um papel preponderante.

E o Brasil foi ajudado, intencionalmente ou não, pela arbitragem. O pênalti que nos propiciou a virada num momento crucial não existiu, como comprova a miríade de câmeras posicionadas em todos os pontos do estádio. Em outro lance importante, apitou-se uma falta igualmente inexistente sobre o goleiro Julio Cesar. 

Teoria da conspiração

Esse fato – os erros da arbitragem – certamente alimentará a pitoresca teoria da conspiração segundo a qual “a Copa está comprada”, num conluio entre o PT, a Fifa, os patrocinadores e, se bobear, também a rede Globo e o Galvão Bueno.

A paranoia conspiratória é bobagem, claro, mas isso não significa que não haja uma tendência a favorecer o time da casa, como ocorreu em outros mundiais. Os casos mais flagrantes são os das copas de 1966 na Inglaterra e de 1978 na Argentina. Hoje, com os bilhões de olhos do mundo voltados para as quatro linhas, os roubos escandalosos são muito menos factíveis.

Além disso, “comprar” adversários para conseguir resultados, como provavelmente aconteceu com a seleção do Peru na Copa da ditadura argentina, tornou-se quase impossível, já que até mesmo as seleções mais frágeis são compostas de atletas que ganham milhões na Europa ou na Ásia e querem usar a vitrine mundial da Copa para se valorizar. O clichê de que “não existe mais time bobo no futebol” é a pura verdade.

Por tudo isso, é impossível prever o que acontecerá nas próximas semanas – e o efeito que isso terá na vida do país. Certamente a autoimagem dos brasileiros sairá modificada de algum modo. Por enquanto, há um visível descompasso entre a euforia verde-amarela que a televisão e a publicidade tentam nos impor e o clima de desconfiança (quando não de desalento e rancor) que prevalece nas ruas.

O que pode eventualmente mudar isso, fazendo a balança pender para o lado do entusiasmo e da festa, é justamente o futebol, esse poderoso catalisador do imaginário popular. Tudo – ou pelo menos muita coisa – vai depender do desempenho de Neymar e companhia dentro de campo. 

A dobradinha Copa-eleições

Já faz muito tempo que as eleições para os principais cargos, no Brasil, coincidem com anos de Copas do Mundo. Para anular os argumentos dos que veem uma relação mecânica entre futebol e voto, cabe lembrar que, nas últimas quatro eleições, quem ganhou em campo perdeu nas urnas, e vice-versa. Em 1998, a seleção perdeu na França e Fernando Henrique Cardoso se reelegeu. Em 2002, ganhamos a Copa na Ásia e o governo perdeu para a oposição. Em 2006, perdemos na Alemanha e Lula se reelegeu. Em 2010 perdemos de novo, na África do Sul, e o governo voltou a ganhar as eleições.

A diferença, agora, é que a Copa é aqui em casa, o que torna mais complexa a equação. Mas achar que uma pessoa, ou que todo um povo, seja capaz de votar num candidato só porque uma seleção ganhou ou perdeu um torneio expressa, a meu ver, um desprezo olímpico pela inteligência e pela sensibilidade do outro, do vizinho, do compatriota.

Para concluir, indico a leitura de uma pesquisa interessantíssima publicada pelo The New York Times dois dias antes da abertura da Copa, sobre as opiniões e expectativas dos cidadãos de dezenove países. Um dado revelador: o Brasil, a França, os Estados Unidos, a Rússia, o Japão e a Coreia do Sul são os únicos países em que uma grande parcela da população está torcendo contra sua própria seleção. Isso deve significar alguma coisa, mas não sei o que é.

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