No vestiário

Colunistas

27.04.16

Queria muito voltar a falar de cultura, mas não está dando. Dias antes do assombroso espetáculo da votação na Câmara a favor do impeachment, um colega de academia de ginástica berrou ao me ver entrar no vestiário: “E aí, você, que é comunista, vai ter golpe ou não vai?”

Já tinha ouvido um pouco de tudo, mas “comunista”?

“Ué? Você que já foi pra Rússia sabe como é lá”, continuou meu colega de academia.
“A Rússia hoje não é comunista”, expliquei. “Lá é que nem o Cunha.”
“Que é que tem o Cunha?”, meu colega rebateu, levantando o tom, que já não era baixo, como se eu tivesse ofendido a mãe dele.
“É réu por crime de lavagem de dinheiro, corrupção, ocultação de bens e evasão de divisas. Não podia estar onde está.”
“Ele já foi julgado? Foi condenado? Então, pronto.”

Dias depois da votação do impeachment, quando o país assumiu sua verdadeira cara, o mesmo colega repetia eufórico, no vestiário, que Cunha era seu “malvado predileto”, enquanto outro, também muito contente, incensava o presidente da Câmara: “Podem dizer o que quiserem, mas que inteligência! E que fleuma!”. Eu já tinha decidido me calar quando meu vizinho de armário veio contar uma piada: “Saiu o resultado do exame da cusparada que o Jean Willys deu no Bolsonaro”. Não é difícil imaginar a conclusão, vinda de alguém que acha vergonhoso um homem fazer sexo oral com outro homem mas não vê nenhum problema em um deputado celebrar a tortura e a ditadura no Congresso nacional.

E aí eu não me contive. Meu vizinho de armário é judeu. Que é que faz um judeu tomar o partido de um fascista, ainda que seja pra fazer graça? Não lhe teria ocorrido fazer nenhuma piada sobre o Bolsonaro? A resposta veio no mesmo dia, quando li a coluna de Fernando de Barros e Silva, no blog da revista piauí, destacando um dado secundário mas estarrecedor da pesquisa do Datafolha sobre as intenções de voto para presidente: Jair Bolsonaro é o favorito entre os 5% mais ricos da população (os que ganham mais de dez salários mínimos).

No domingo à noite, após a votação do impeachment na Câmara, cruzei com um grupo de gays que vinham descendo a rua Augusta — esfuziantes, comemoravam o resultado. Não vejo nenhuma contradição em um gay ser a favor ou contra o impeachment, ser de direita ou de esquerda, conservador ou liberal. Mas há uma diferença entre conservadorismo e suicídio. Que país eles vislumbravam depois do show de horrores transmitido ao vivo em cadeia nacional?

É um lugar-comum que, na falta de argumentos, um dos lados da discussão termine citando Hitler e o nazismo como exemplos do mal absoluto e indiscutível. Costuma ser uma saída fácil e burra, e uma comparação em geral improcedente e irresponsável. Bolsonaro não é Hitler nem nazista, claro, mas há lições da história que não deveriam ser esquecidas. Não se faz pacto com o fascismo. Por motivo nenhum. Não se condescende com o fascismo nem por piada.

Durante a ocupação nazista da França, o tio-avô de um amigo francês, judeu, optou por colaborar com o governo de Vichy, achando que assim poderia salvar o maior número possível de judeus. Tornou-se o representante oficial dos judeus franceses sob a ocupação e morreu, assim como a mulher e os filhos, num campo de extermínio, enquanto o avô e o pai do meu amigo sobreviveram, na clandestinidade e na resistência.

Diante da minha intervenção inesperada, meu vizinho de armário retrucou, com razão: “Mas é apenas um. Não é um Congresso de nazistas”. Mais um motivo para os outros deputados expulsarem Bolsonaro do Congresso depois do que ele disse, em vez de seguirem evocando Deus e a família, como se nada houvesse. A bancada evangélica, decisiva para o movimento e o resultado que deve pôr Michel Temer na Presidência do Brasil, vinha reclamando da falta de interlocução com o governo Dilma, acusado de “confronto ideológico” com a pauta religiosa. Agora, assim como Cunha, querem de Temer o reconhecimento pelo que fizeram por ele. É o anúncio de um país temerário. E é a hora de lembrar aos oportunistas que não é nem com Deus nem com a família que eles vão garantir a justiça, a igualdade e a liberdade para os brasileiros. Se é que é isso mesmo que eles pretendem.

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