Notas sobre a linguagem jornalística no cinema de ficção

Cinema

20.07.14

O IMS está lançando A batalha de Argel em DVD. O filme terá exibição no dia 24, no IMS-RJ, às 20h.

A estrutura de A batalha de Argel é clássica, em três atos.

No primeiro se dá a apresentação dos personagens e da intriga, puxada por uma sequência de abertura com características de impacto.

No segundo, se dão o aprofundamento e o desenvolvimento do conflito.

Por fim, o terceiro ato leva ao desfecho da ação e oferece um epílogo como fecho.

A forma e o estilo do roteiro refletem as exigências da história narrada, e não apenas vontade ou hábito do roteirista, Franco Solinas, ou do diretor e coargumentista, Gillo Pontecorvo.

Apesar dos pontos de contato com outros filmes de Pontecorvo (Queimada, posterior, 1969, e Kapò, anterior, 1960), A batalha de Argel adota dramaturgia assemelhada à de linha brechtiana, “distanciada”, na qual a emoção fica fundamentalmente a cargo do espectador. Elenco, roteirista, fotógrafo e diretor não substituem o espectador, emocionando-se em seu lugar; não purgam suas dores e seus sentimentos; não apostam na catarse. Em troca, oferecem ao público todas as informações que possibilitem uma tomada de posição.

Já no primeiro momento, somam-se os componentes da imagem (posição de câmera, angulação, enquadramento e composição) a cenários, figurinos, mise-en-scène e interpretação, para não deixar dúvidas: esse filme toma o partido do homem que se liberta contra o do homem que oprime. No centro do quadro, cabisbaixo, um argelino (pequeno, magro e velho) amarrado a uma cadeira. Seu corpo, seminu e exaurido, e o ambiente da sala nos permitem compreender que vem de terminar uma sessão de tortura. Ele ocupa o centro do quadro e é visto num plano conjunto (aparecem móveis e objetos, e os soldados que se movimentam pela sala) em que a câmera alta/plongé, colocada em ângulo de aproximadamente 30 graus, marca nitidamente sua inferioridade e a supremacia dos altos, fortes e louros franceses.

Se declara sua paixão no primeiro gesto, o roteiro não se furta a mostrar atitudes “condenáveis” dos revolucionários argelinos, segundo a ótica da hipocrisia ocidental: atentados a bomba vitimam mulheres e crianças em points frequentados por jovens europeus; o herói é, originalmente, um marginal, “batoteiro” e ladrão; crianças agridem um bêbedo em nome da moral revolucionária…

Constante é a presença do zoom (discreta) e da teleobjetiva. Ela puxa o fundo, desfoca-o e contribui para tornar bruscos e rápidos os movimentos de câmera. Ademais, permite que o diretor não se intrometa nas situações e mantém o espectador distante ao negar-lhe a pseudotridimensionalidade que a lente “normal” sugere.

Realizado do ponto de vista de um autor onisciente neutro, o filme restaura os principais fatos históricos e constrói dramaticamente seus bastidores. Imprime à frieza dos dados o “interesse humano” – marca da reportagem moderna – imprescindível para ampliar seu público muito além dos segmentos interessados na Guerra da Argélia e possibilitar que, hoje, mais de 30 anos depois de realizado, mantenha sua força motivadora de reflexão.

Mesmo as cenas puramente ficcionais são tratadas cirúrgica e factualmente. O artesanato se faz presente todo o tempo, pois nada é casual. A dramaturgia, porém, é a do jornalismo investigativo. Pontecorvo corta e faz elipses que, mantendo a essencialidade do conteúdo, garantem a A batalha de Argel um lugar nobre na categoria dos filmes de ação. Em duas horas, não há praticamente minuto em que algo não aconteça, em que nova informação não seja dada, em que o espectador frustre sua ânsia de tensão.

Por outro lado, entretanto, rejeita a mediocridade dos filmes de ação comuns, aqueles que engolfam o público, plasmando-o e massificando-o na impossibilidade de respirar, de discordar, de condenar. Ele próprio sugere a crítica, por exemplo, quando usa a mesma música descritiva, solene e plangente, como fundo para as diferentes cenas em que árabes e europeus recolhem os corpos das vítimas dos atentados. São situações trágicas e cruéis, para quaisquer dos partidos. O estilo é o dos jornais da tela.

Outro elemento que aproxima a dramaturgia de A batalha de Argel do jornalismo é a sensação contraditória de que, apesar de nada poder ser feito quanto aos acontecimentos referidos (atos agidos), somos instigados a tomar posição, em vez de pôr-nos a torcer pelo mocinho contra o bandido. Isto é, o passado é referência para o futuro.

A abertura/introdução/impacto de A batalha de Argel faz realmente jus a essa tripla denominação. Durando cinco minutos e 39 segundos – da primeira imagem à fusão que retrocede a ação a 1954 e dá início à apresentação de Ali – pode, com justiça, receber o título de abertura. Não apenas abre o filme, contendo créditos, título e primeiras imagens, mas abre horizontes, janelas, portas e até paredes em que as pessoas se encarceram para, paradoxalmente, conservar a liberdade.

 

É aqui também que se introduz a história, sem grandes explicações, mas lançando volumosas iscas à curiosidade dos espectadores: o homem torturado, sempre mantido em sua indefesa posição de inferioridade, é “nacionalizado” francês por seus torturadores. A feliz expressão é usada pelo oficial que lhe impõe o “bico-de-pato” de paraquedista, mas áspera e prontamente condenada pelo coronel, que não se permite brincadeiras com resultados imprevisíveis. Em seguida será introduzida a guerra, com centenas de paraquedistas invadindo a “cidade árabe”, a Casbah, em que os verdadeiros donos da terra, os “nacionais”, ficam confinados, só saindo para servir aos colonizadores, na cidade europeia. A câmera mostrará, quase invariavelmente em plongé, os argelinos diminuídos, inferiorizados… Os soldados, superiores em sua violência, usufruirão da imponência propiciada pela câmera baixa, em contre-plongé.

A operação militar que se desenrola a seguir é registrada de maneira ainda mais documental. A câmera filma, dos melhores ângulos, como os soldados ocupam terraços, arrombam portas, aterrorizam e conduzem como gado seus habitantes por varandas e escadas internas. Permitem-se discretos desfoques e titubeios. O espectador assiste, da mesma forma como vê, na TV, um policial executar um ladrão na porta do shopping Rio-Sul.

Encerrando a introdução, temos o primeiro contato com Ali la Pointe e seus três companheiros. E nos surpreendemos a descobrir que os poderosos paraquedistas franceses, às centenas, mobilizaram-se para tentar capturar um jovem nos primeiros anos de adulto, um garoto (ainda-criança-já-adolescente), uma linda mulher e um homem vigoroso – de feições e olhar decidido, assustado com a frustração do destino, mas de modo nenhum temeroso. Os quatro têm olhares e feições doces, tensas, com perceptível generosidade. Essas são imagens que não poderiam existir se o roteiro não contivesse sua essência. No entanto, a teleobjetiva, também aqui, trata de manter a distância.

Não são todas as aberturas/introduções que se caracterizam como impactos (apesar de Ola Olsson, professor de dramaturgia do Instituto Dramático da Suécia, dar o nome de anslag a essa parte inicial da estrutura dramática e identificá-la como uma divisão da apresentação). A de A batalha de Argel, porém, é exemplar. Durante os cinco minutos e 39 segundos iniciais, o espectador quase não tem tempo de relaxar. Novas informações são introduzidas continuamente; ações se sucedem; tensões se somam através de angulações, movimentos de câmera, enquadramentos, cortes. Isso corresponde a 4,8% do filme, mas ditará todo o ritmo e todo o interesse da ação. Em termos jornalísticos, poderia ser chamado de gancho. As perguntas saltam: quem são essas pessoas que parecem frágeis, encurraladas, mas impõem tal temor ao exército colonial francês – particularmente Ali la Pointe, a quem é dirigido o ultimato dos paraquedistas? O que fazem? O que está acontecendo? Que organização é essa de que falam os militares?

A apresentação, a rigor, começa, aos cinco minutos e 40 segundos, com um grande plano geral em panorâmica de Argel, movendo-se da cidade europeia até a Casbah. Destaca o casario árabe de estilo mediterrâneo, tetos planos comunicantes, paredes brancas, ruas estreitas. Em vez de paisagem, cenário, é um personagem que a câmera nos descreve. Letreiros identificam ano (1954) e local.

De imediato, outra personagem, vista de relance na abertura, é propriamente apresentada: a população árabe, coadjuvante que, no final, terá o papel principal. Aqui, ainda é objeto. A câmera é “instável”, como se manejada por um cinegrafista (repórter cinematográfico, no quadro de funções da lei dos jornalistas), mas o olhar é firme, em primeiros planos, fundos desfocados, sem profundidade de campo. Não busca criar simpatias, e sim fornecer conhecimentos. Olhando as imagens, percebemos tratar-se de pessoas pobres, laboriosas. Falta alegria. Vivem, apenas. A mobilização está ausente do quadro. Em contraponto, na trilha sonora ouve-se um comunicado da Frente de Libertação Nacional sobre a situação política. Somos nós que o ouvimos. A personagem população não está diretamente envolvida, ainda não passou a povo.

Logo depois, aos seis minutos e 43 segundos, vamos reencontrar Ali, desta vez para conhecê-lo. Opera uma banca de carteado, daquelas em que o “otário” tem que adivinhar onde está a carta escolhida. A câmera descreve: rostos, movimentos, esperanças, pobreza, tensão. Parece um documento especial. Uma francesa chama o guarda e denuncia. O argelino começa a correr, busca a liberdade. É perseguido. Os colonos gritam denunciando sua rota. Interceptado pelo pé sorrateiro de um jovem, parte de um grupo de franceses, cai ao chão. Frustração e humilhação em câmera alta/plongé. Soberba e escárnio no sorriso do francês, em câmera baixa/contre-plongé.

Ali se levanta, reage, o sorriso fanfarrão desaparece. O grupo tenta linchá-lo. Chegam os policiais. É preso. Briga, espancamento, prisão são registrados por uma câmera “indecisa”, que parece buscar os gestos mais significativos, as expressões mais importantes. É como se aquilo não fosse encenação. Os fora de foco e as “imprecisões” garantem o distanciamento. Produzem estranhamento. Passaram-se oito minutos. Quarenta segundos depois, quando arrastado para a prisão, o destino do espectador já estará ligado ao do personagem. Torna-se difícil não querer saber o que o futuro reserva e como ele vai chegar à situação da abertura. Confirma-se: o filme é sempre um movimento em direção ao futuro.

A apresentação continuará até os 15 minutos e dez segundos, sempre introduzindo novos dados e protagonistas. Aos nove minutos e quatro segundos, o rosto de Ali, na cadeia, marca um novo momento. A tensão não é a mesma da fuga ou do impacto inicial. Há desolação, perplexidade e algo mais, perceptível e indefinível. É como se esse frequentador de celas (o que nos foi informado pela trilha sonora logo após sua captura) tivesse percebido estar em um mundo diferente do habitual. Ali estão, e a câmera os descreve, homens cujo aspecto não é o de “ratos de prisão”.

É quando a FLN adquire físico. Só ouvíramos falar dela no comunicado político inicial. Aqui, ela é gente e solta um grito, Viva a Argélia!, dando início ao protesto que acompanha um dos presos por corredores e pátio até a guilhotina. Assistimos a tudo, mas não somos parte dos acontecimentos. Em todo o filme, esse é o único momento em que Pontecorvo se utiliza do ponto de vista subjetivo, com o operador se postando no lugar de Ali para testemunhar o guilhotinamento do líder da FLN. Ainda assim, não nos envolvemos, pois o personagem permanece apático e alheio aos ideais da luta de libertação. Algo, porém, se quebra. A câmera ainda é aparentada com a do documento especial e assim vai seguir ao longo do filme.

O roteiro prepara cada nova ruptura, pavimenta o caminho das ações que se sucedem incansavelmente. A violência cirúrgica e nua do guilhotinamento fecha uma etapa. Já sabemos o básico sobre Ali e encontramos a FLN como fenômeno coletivo, objeto de perseguição. No entanto, conhecemos pouco sobre eles. O tema de A batalha de Argel não é a vida nas prisões, mas a luta nas ruas. Uma elipse de tempo (cinco meses) traz, aos 11 minutos e dois segundos, a nós e a Ali a lufa-lufa das vielas da Casbah. O olhar é o mesmo das anteriores cenas de rua. Busca as situações em meio aos fatos cotidianos e encontra o ex-prisioneiro à espera. Então, chega a FLN concreta, pelas mãos do menino que víramos a seu lado no flashforward da abertura. Ela vem para tornar-se definitivamente a verdadeira protagonista. As boas reportagens contam a história por intermédio dos homens que a vivem.

O resto da apresentação vai ser editado, agora, como em sub-retrancas, blocos nitidamente marcados.

1. Ali recebe ordens de executar, pelas costas, um policial francês, como teste para ingressar na organização. Por fanfarronice, desobedece às instruções e tenta matá-lo pela frente. A arma está descarregada. Quase é preso, mas consegue escapar. Levado a Kader, comandante da FLN, recebe uma aula sobre segurança e estratégia: era preciso ter certeza sobre sua sinceridade, mas ainda não é hora de matar os franceses. Se cumprisse as instruções não correria riscos. Essa sequência dura cinco minutos e 28 segundos.

2. Nova elipse. Estamos em 1956. Duas sequências compõem essa sub-retranca, que podemos chamar de FLN conquista o poder de polícia.

2.1. Dezesseis minutos e 30 segundos – O lead é semelhante a outros que pontuam a narrativa: novo comunicado trata de questões éticas e morais que impedem a adesão do povo à luta e põem em risco a segurança da organização (corrupção, alcoolismo, drogas, proxenetismo). Enquanto o som nos diz o que pensa a organização, as imagens (um aqui e agora neutro e ético) mostram como ela age. Um grupo de moleques, comandado pelo menino que já conhecemos, humilha e agride um bêbedo.

2.2. Dezoito minutos e 13 segundos – A segunda sequência mostra Ali la Pointe percorrendo prostíbulos e cabarés à procura de um cafetão. Adverte um homem sobre o uso de ópio. Encontra seu antigo companheiro e o avisa para deixar de explorar a prostituição. É desafiado e atacado. Mata o proxeneta.

3. Vinte minutos e 34 segundos – Na terceira sub-retranca, Pontecorvo nos informa como a FLN assumiu a autoridade civil e religiosa. Um dirigente realiza um casamento.

4. Vinte e três minutos e seis segundos – Série de execuções de policiais, ataques a delegacias e quartéis e combates nas ruas mostram como a organização se constituiu em poder militar, penetrando o território do inimigo, a cidade europeia.

O aprofundamento começa (25 minutos e dez segundos) com a introdução de novo e fugaz personagem: um jornalista francês que examina fotos de militares mortos pelos argelinos e, por telefone, fala com Paris. Tem posição nítida a favor da ação repressora. Os atentados continuam. Pontecorvo nos informa sobre a reação oficial: comunicado do Governo Provincial sobre os “maus argelinos”, cerco da cidade árabe, um clima dos documentários da ocupação nazista.

Um oficial francês é executado. Segue-se a perseguição e detenção de um inocente pedreiro nativo, que fugira apavorado com a histeria dos colonos contra todo e qualquer árabe.

Outra vez o jornalista. No boletim que passa para a matriz, inclui o endereço do pedreiro. Está lançado novo gancho. Nada é gratuito. Mais ou menos aos 34 minutos o jornalista e seu grupo entram na cidade árabe. Evidencia-se a presença da Organização do Exército Secreto (OAS / Organisation de l’Armée Secrete). Poderosa carga de explosivos manda pelos ares o quarteirão.

A sequência seguinte reporta o resgate de corpos. Música e estilo lembram, propositalmente, os jornais da tela. O público compreende que não há volta. As vítimas são civis. Permanecemos distanciados, a refletir.

Em consequência, Ali encabeça manifestação armada. Com seus homens, desce as estreitas ladeiras da cidade árabe em busca de desforra. Kader os detém. Não é hora da insurreição. A FLN controla o processo. A crueza e a simplicidade das imagens reiteram as diferenças entre o estrategista Kader e o impulsivo homem de ação. Sempre, a câmera instável e os desfocados da reportagem.

Duas sequências se destacam particularmente nessa fase de aprofundamento:

1. Na Casbah, três mulheres se caracterizam para missões na cidade. Talvez seja um dos momentos cinematográficos mais expressivos do que Brecht chama de “gesto social”:

“Por Gestus não se deve entender a gesticulação; não se trata de movimentos de mão que sublinham ou elucidam, trata-se sim de posturas gerais (Gesamthaltungen). Uma língua é gestual quando ela descansa sobre o gestus, quando mostra determinadas posturas daquele que fala, que contrapõe o falante a outras pessoas (…)1. O gestus social é o gestus relevante para a sociedade, o gestus que deixa inferir conclusões sobre a situação da sociedade.”2

A sequência começa com um desses: uma das mulheres tirando o véu, frente a um espelho. O espectador ocidental comum, certamente, toma-lo-á como algo corriqueiro. Afinal, marca o início de um processo de transmutação que vai levar as mulheres a romper o cerco militar e ser aceitas em pointseuropeus. Trocarão suas vestes árabes e se maquiarão. A que se destaca tirando o véu chegará a cortar os cabelos e oxigená-los.

Cada gesto, numa cena quase silenciosa, sem palavras, é cheio de significados: é uma grande violência, para uma mulher árabe, abandonar os adornos de sua identidade coletiva e adotar os padrões europeus. Sequência tensa: assistimos, em última instância, a algo como strip-tease seguido de estupro, a que se submetem por uma causa maior. Reconhecemos uma delas como a companheira de Ali la Pointe na abertura. O tratamento contido e as posições neutras, mas presentes, da câmera valem como um box na narrativa. Sem ele, perder-se-ia boa parte do interesse humano.

2. As três mulheres colocam bombas em um bar, uma lanchonete e uma agência de viagens. Pontecorvo contradita as razões da “revanche” árabe com informações essenciais sobre os lugares do ataque: rostos humanos alegres, crianças, jovens e mulheres felizes, pessoas gentis e afáveis. O inimigo é gente.

O resgate das vítimas europeias tem exatamente o mesmo tratamento do apresentado na Casbah. Jornal da tela, música pungente, distanciamento respeitoso e tocante.

Entramos no desenvolvimento do conflito, aos 51 minutos e 20 segundos, com a chegada das tropas de paraquedistas transferidas das montanhas e que haviam lutado na Indochina. O jogo se desequilibra. A guerra é para valer. O coronel Phillipe Mathieu nos é apresentado: o único protagonista ainda desconhecido. Informam-nos, verbalmente, seus títulos e suas glórias. Aprendemos, no desenrolar da ação, suas verdadeiras virtudes de combatente e estrategista temível. Dono de fria e rude objetividade. Já o víramos, na abertura, repreender um de seus soldados pelo tratamento humilhante ao torturado, “nacionalizando-o”. A partir de agora, Mathieu introduzirá os métodos científicos de guerra. Se, antes, o espectador assistia a operações militares e de informação, tomará conhecimento do que é a contrainformação. Mathieu dá uma aula a seus homens sobre a estrutura da organização revolucionária e como derrubá-la.

Consolidados os poderes policial, civil e militar entre a população árabe, a FLN investe na conquista do poder político. Adota a luta de massas. Deflagra uma greve geral de oito dias. Sucesso absoluto: os argelinos seguem sua orientação. É, no entanto, fatal erro estratégico, previsto por Ben M’Hidi – o dirigente que só aparece para pontuar politicamente a ação e provocar a explicitação ideológica – e Mathieu. Cada um, de seu jeito, observa que a FLN saiu do anonimato e adquiriu forma. Será fácil atingi-la.

À imprensa o coronel contrainforma: a greve falhou, seu objetivo era a insurreição. Mesmo sendo mentira, isso está nos clássicos e na história, tem coerência. Mathieu menciona a “falsa humanidade” dos que defendem os argelinos. Ao saber que Sartre criticou a ação colonial em artigo num jornal francês, pergunta: Por que os Sartre nascem todos do outro lado? Um repórter questiona: Gosta de Sartre, coronel? A resposta: Não. Mas, gosto menos como adversário. Está registrada a resistência da intelectualidade na metrópole.

Inicia-se a repressão em massa. Por amostragem, os franceses escolhem grevistas para ser “interrogados”. Os demais são forçados ao trabalho. A estrutura da FLN começa a ser identificada, os retângulos do organograma recebem nomes. Mathieu compara a Frente a uma tênia: há que esmagar-lhe a cabeça para impedi-la de crescer novamente. Agora, eles já sabem quem são os quatro cabeças, têm seus retratos. Kader e Ali entre eles.

Por acaso, Ben M’Hidi cai preso. É apresentado aos jornalistas. Justifica as ações terroristas: dispõe-se a trocar as cestinhas das mulheres árabes pelos aviões e napalm que os franceses usam. Lança mais uma chave ideológica do filme ao afirmar que, apesar da inferioridade militar, é mais fácil o FLN derrotar o exército francês do que o exército francês mudar a história.

Sua prisão motiva a sequência ideologicamente mais explícita de A batalha de Argel. A da conferência de imprensa em que Mathieu é obrigado a dar explicações sobre o “suicídio” do líder revolucionário e a existência de tortura. Vale a pena destacar dois trechos.3

Mathieu: Os sucessos obtidos são resultados desses métodos. Uns pressupõem os outros e vice-versa.

(…)

Mathieu: A palavra “tortura” não consta do nosso vocabulário. Temos sempre falado do interrogatório como o único método válido em uma operação de polícia dirigida contra um bando de desconhecidos. Por seu lado, a FLN pede aos seus membros, em caso de captura, para manter silêncio por 24 horas. Com isso, a Organização tem o tempo necessário para ver inutilizada qualquer informação obtida. E nós… Que gênero de interrogatório deveríamos fazer? O dos tribunais, que, para um crime de homicídio leva alguns meses?

Uma voz: A legalidade é incômoda, coronel.

Mathieu: E quem coloca bombas respeita a legalidade? Lembram-se do que disse Ben M’ Hidi a esse respeito? Não, senhores, creiam-me: é um círculo vicioso. Poderíamos discutir horas sem chegar a uma conclusão, pois esse não é o problema. O problema é que a FLN nos quer fora da Argélia, e nós queremos ficar. Ora, parece-me que, apesar das concepções diferentes, todos estamos de acordo que devemos permanecer. Quando começou a rebelião, ninguém fez “espuma”. Todos os jornais, incluídos os de esquerda, quiseram que fosse sufocada. Por isso fomos mandados para cá. E nós, senhores, não somos loucos nem sádicos. E os que hoje nos dizem fascistas não sabem que muitos de nós lutamos na Resistência, não sabem que, entre nós, há sobreviventes de Dachau e Buchenwald. Nós somos soldados e temos o dever de vencer. Portanto, para sermos precisos, eu lhes faço uma pergunta: a França deve permanecer na Argélia? Se a resposta é sim, devem aceitar todas as necessárias consequências.

Nada podia ser mais claro. A escolha de uma conferência de imprensa nervosa, como ambiente para a explicitação ideológica, elimina subterfúgios e o risco da gratuidade. Possibilita evidenciar o tom jornalístico. É também um gesto que desvenda a linguagem do filme e anuncia o que vem de imediato: a exibição da tortura, que até esse momento fora mais sugerida do que vista.

Não posso deixar de comentar a breve mas significativa sequência da tortura, abrindo, antes, parênteses: só fui assistir a A batalha de Argel em 1978, na Suécia, sete anos depois de fazer, com Pedro Chaskel, Não é hora de chorar (No es hora de llorar).4 Isso é importante, pois a tortura é apresentada de maneira muito semelhante nos dois filmes: distanciada, didática, expositiva, simbólica. O que faz a diferença resulta, precisamente, do que é particular aos gêneros a que cada um pertence. Sendo Não é hora de chorar um documentário que utiliza técnicas de encenação, a violentação física do ser humano ganhou com ser esquemática, quase gráfica. O silêncio absoluto da trilha sonora ressaltou a força das imagens e deixou o espectador sozinho com seus olhos. O contraponto entre a sonoridade das entrevistas e o silêncio da tortura provoca uma quebra dramática que enriquece a narrativa.

Pontecorvo, inversamente, realizou um filme de encenação com base em técnicas e linguagens jornalísticas, documentais. Utilizar, em toda sua crueza, o mesmo recurso que eu e Pedro viríamos a empregar provocaria outra quebra, empobrecedora. Romperia com o essencial: tratar-se de um filme de encenação. Por outro lado, o som de gritos, gemidos e impropérios, ao estilo dos melodramas ou dos filmes de ação, também estraçalhariam o tom jornalístico que caracteriza A batalha de Argel. Assim, se a sequência é muda, não é silenciosa. Comenta-a a mesma música que serve de fundo ao resgate dos corpos das vítimas dos atentados. Se é distanciada, didática, expositiva e simbólica, a interpretação não está ausente. Corpos se contorcem, emitem gritos mudos. Como quadros da Paixão.

26 de agosto de 1957. A narrativa entra no desfecho (90 minutos e 37 segundos). Começa a ofensiva final. Os outros dois membros do Estado Maior da FLN são cercados pelos paraquedistas e explodem seu refúgio, matando alguns soldados.

Em seguida, Mathieu consegue prender Kader e a mulher que participara dos atentados com os cabelos pintados de louro. O coronel mostra respeito pelo adversário, mas considera tudo acabado. A mulher responde que Ali está na Casbah. Enquanto existir, a FLN não será derrotada. O espectador, contudo, sabe que Ali será pego.

Aos 102 minutos a narrativa volta ao ponto em que a abertura parou: Ali la Pointe e seus companheiros, encerrados na parede. É o clímax. Dura cinco minutos. Os franceses explodem a casa. Tudo está acabado. Mathieu mostra-se friamente satisfeito: um especialista que constata a correção de seus métodos. A cena tem mais ou menos um minuto. Se Ali la Pointe fosse o principal protagonista, a história estaria contada, este seria o fecho. Mas a população se transformou em povo.

Pontecorvo não se satisfaz. O epílogo começa aos 108 minutos e 40 segundos – 11 de dezembro de 1960. A linguagem, agora, é desabrida e exclusivamente jornalística. O povo da Casbah desce para os limites com a cidade europeia numa insurreição desarmada e heroica, na qual, pela primeira vez aparecem bandeiras. A polícia dispara, espanca, prende, mas os protestos continuam. E os “incompreensíveis” gritos agudos característicos dos antigos nômades varam noite e dia. Aos 113 minutos, o verdadeiro fecho: a guerra termina, os franceses concordam em deixar a Argélia. Toda a sequência tem o tratamento de um noticiário de TV: a voz de um jornalista comenta e informa.

A câmera e o tom de reportagem encontram sua consagração, para não deixar dúvidas sobre a linguagem do filme.

Luiz Alberto Sanz é professor de jornalismo na Universidade Federal Fluminense, autor de Procedimentos metodológicos: fazendo caminhos, ensaio sobre o ensino de jornalismo (Senac, 2006). Texto originalmente publicado em Cinemais, número 17, Rio de Janeiro, maio/junho de 1999.

 

Notas

1. Bertolt Brecht. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 281.

2. Idem, ibidem, p. 283.

3. Todas as citações de A batalha de Argel são tiradas do próprio filme.

4. Pedro Chasquel e Luiz Alberto Sanz, No es hora de llorar, Santiago, Departamento de Cine de la Universidad de Chile, 1971. Documentário sobre a tortura no Brasil, com base no depoimento de cinco revolucionários banidos. Premiado com a Pomba de Ouro em Leipzig, RDA, no mesmo ano.

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