O abraço de Nietzsche

Cinema

05.01.16

Imaginemos um processo narrativo interrompido no instante em que a narração ia começar: terminada a ação, ou pelo menos uma parte significativa dela, o narrador permanece numa espécie de vazio, num gesto parado no ar em direção à construção da narrativa. O cavalo de Turim (em cartaz com exclusividade no cinema do IMS-RJ) se realiza precisamente neste espaço, neste quase fora de tempo essencial para a expressão cinematográfica. Filmes contam histórias como se não estivessem contando nada. As cenas parecem pertencer a um presente absoluto, acontecem diante dos olhos, ao vivo, antes que um possível narrador comece a narrá-las. Esta sensação  – a cena narra a si própria –, é mais intensa que nunca neste último filme de Béla Tarr, porque nele a cena visível nem mesmo obedece a uma qualquer relação de causa e efeito para ser recebida como uma possível ilustração de uma história. Existe como informação completa em si mesma, não depende de um fio narrativo, de um qualquer contexto externo para ganhar sentido. A cena, a rigor, não conta: ela é. A estrutura de composição do filme transfere para o espectador a tarefa de construir uma narrativa a partir dela. Ele, espectador, terminada a projeção ou em simultaneidade com ela, é que deve contar uma história para si mesmo a partir das imagens, dos pequenos gestos de pai e filha fechados em casa para se proteger da tempestade e do vento que chicoteia forte lá fora.

János Derzsi em O cavalo de Turim

É mesmo o último filme de Béla Tarr. Desde o princípio todos sabiam que esta fábula da desconstrução do mundo seria seu último trabalho. “Deus criou o mundo em seis dias. Observando as coisas do ponto de vista de hoje, queríamos perguntar como desconstruir o mundo em seis dias. Queríamos dizer algo sobre os últimos seis dias, sobre o cavalo, e sobre o que aconteceria com o cocheiro se ele perdesse o cavalo”.

O ponto de partida é uma novela  de László Krasznahorkai. Mas como nos anteriores, inspirados em roteiros [O homem de Londres / A london férfi, 2007] ou livros do escritor [A harmonia Werckmeister /Werckmeister harmóniák, 2000; Satantango /Sátántangó, 1994;  e Danação/Kárhozat, 1988] O cavalo de Turim (A torinói ló, 2011) não é uma adaptação literária, como explicou Béla Tarr em entrevista a Virginie Sélavy durante o Festival de Edinburgh em junho de 2011. A colaboração entre ele e Krasznahorkai é simples: jamais falam de arte. Conversam sobre as pessoas e as questões reais que inspiraram o livro. O diretor, então, volta à realidade em busca das mesmas coisas que o escritor observava enquanto escrevia. “Assim, tenho meu ponto de vista, em sua maioria igual ao do livro, e posso fazer um filme sobre o que foi contado no livro. Não trabalho diretamente com o livro, volto para a realidade que inspirou o livro para construir o filme. Literatura é uma linguagem, cinema é outra, uma tradução direta é impossível”.

Erika Bók em O cavalo de Turim

A história contada no prólogo, de certo modo, reafirma esta impossibilidade de traduzir uma expressão verbal (o narrador se refere a algo acontecido em algum lugar do passado, próximo ou distante, mas de qualquer modo passado) e uma expressão visual (um não-narrador, um talvez futuro narrador, vive a condição de espectador de algo que está acontecendo no presente imediato). Para contar uma história por meio de palavras, nenhuma imagem. Tela preta, vazia, por baixo do texto que narra o acontecido em 3 de janeiro de 1889, em Turim, quando Friedrich Nietszche viu um cocheiro chicoteando um cavalo. Como em toda e qualquer narrativa, na história contada no prólogo o modo de narrar é tão significativo quanto os acontecimentos narrados. A voz tranquila do locutor contribui para sublinhar o que narrador expõe pela inserção de pequenas dúvidas para pontuar o texto. Nietszche saiu de casa na Via Carlo Alberto número 6 (para um passeio ou para ir ao correio?). Não muito distante de sua casa (ou muito distante de sua casa?) um cavalo se nega a mover. O cocheiro (qual o seu nome? Giuseppe? Carlo? Ettore?) perde a paciência e começa a chicotear o cavalo com fúria. Nietszche, chorando muito, interrompe o castigo abraçando o pescoço do cavalo. Um vizinho o leva de volta para casa. Ele permanece dois dias em silêncio (deitado no sofá da sala?) antes de suas últimas palavras conscientes. O texto, até então naturalmente falado em húngaro, enuncia em alemão as últimas palavras do filósofo: “Mutter, ich bin Dumm”. A partir de então, prossegue o narrador, Nietszche ficou sob os cuidados da mãe e da irmã. Uma observação pouco mais irônica que as anteriores conclui a narração: “não se sabe o que aconteceu com o cavalo”.

A história narrada sobre a tela escura é, a rigor, a única contada em O cavalo de Turim. As imagens aparecem em seguida e a palavra, então, quase desaparece de todo. É verdade, a voz do narrador do prólogo faz duas outras intervenções ao longo do filme para comentar brevemente algo já visto. Mas no filme, apenas imagens. Nada prossegue a história contada no prólogo. Ela começa e termina no prólogo –  depois dela, nenhuma outra história.

Ainda na entrevista no Festival de Edinburgh, Tarr comentou que em seus filmes tenta destruir histórias e incorporar outros elementos. “O  tempo (porque existimos no tempo). O espaço e os elementos naturais (a chuva, o vento). Animais (cachorros de rua, gatos, cavalos) e outras tantas coisas que fazem parte de nossas vidas”, mas que não vemos nos filmes preocupados em prender as imagens dentro de uma história: “informação/corte, informação/corte, ou ação/corte/ação/corte/ação/corte. O que chamamos de informação? O que chamamos de ação? Um pedaço de parede, uma paisagem (está chovendo lá fora), um tempo vazio, são também partes de nossas vidas. Alguém parado, ouvindo algo: é uma informação. Os olhos de alguém: são uma informação. Não é necessário que estas coisas estejam presas a uma história”. Histórias não interessam mais, garante. “Vá o velho testamento, está tudo lá. Nosso trabalho não consiste em criar novas histórias, mas em procurar entender de que modo vivemos a história, a mesma, porque estamos repetindo a mesma história. É claro, as pessoas são diferentes, temos algumas possibilidades de influenciar nossas vidas. Mas vivemos a mesma história”. É mais ou menos o que repete o visitante inesperado em busca de aguardente, no único instante em que a palavra invade a imagem de O cavalo de Turim. Num monólogo apocalíptico, contraditório, recitado com raiva e sem qualquer pausa, ele insiste: nada mais acontece, tudo está degradado, somos cúmplices e vítimas, por séculos e séculos degradamos tudo o que tocamos. Também Deus está metido nisso, embora Deus já não exista. O que aconteceu, aconteceu antes e – quem sabe? – o que aconteceu antes pode ter sido igualmente um modo de não acontecer.

Como não narra uma história, como reúne a matéria bruta que antecede à construção de uma narração, cada cena de O cavalo de Turim é mais o tempo que ação dentro dela, mais o espaço em que os personagens se movem que o movimento deles no espaço. A difícil caminhada de casa até o poço para buscar água; armar, desarmar e guardar a carroça; atrelar e desatrelar o cavalo; ajudar o pai a vestir ou desvestir o agasalho e as botas; sentar-se à mesa para comer as batatas – cada cena obedece ao esforço e ao tempo real necessários para realizar a ação, vai além da simples indicação de um gesto cujo sentido depende da história em que se encontra inserido.

Mihály Kormos em cena de O cavalo de Turim

A narrativa do prólogo funciona também como um modo de preparar a recepção das imagens. Para Béla Tarr ela é um perfeito exemplo de nossas limitações: “Criamos algumas teorias, ou criamos algo, não importa o quê, talvez apenas uma mesa, e acreditamos firmemente em nossa criação até nos depararmos com algo como o cocheiro chicoteando o cavalo”. Diante de algo real, concreto, a teoria desaparece. “Nietszche foi proteger o cavalo com o próprio corpo, abraçou a nuca do cavalo. E pronto. Nossas teorias e análises podem estar erradas, nós temos que nos aproximar das coisas reais com os olhos bem abertos”. A observação indica como o espectador deve se relacionar com tais imagens: ele deve abraçá-las com os olhos, tal como Nietszche abraçou o cavalo. Imaginemos O cavalo de Turim como uma extensão ou projeção do cavalo chicoteado na via Carlo Alberto. O cocheiro, sua filha e o cavalo, chicoteados pelo vento que sopra forte lá fora estão à espera do abraço do espectador.

É preciso de verdade abraçar a cena: vestir o pai, aquecer-se com a aguardente; ensilhar o cavalo, montar e desmontar a carroça; caminhar com a filha da porta de casa até o poço; voltar com ela para casa, no passo difícil de quem (quase) não interpreta e realmente vive o esforço de caminhar ao vento forte; comer a batata ainda muito quente ao lado cocheiro, que, braço direito paralisado, tira a pele com a ponta dos dedos, amassa a bata com um murro e sopra os pedaços antes de engolir; cortar lenha para o fogão, ferver a água para lavar roupa, deixar-se ficar na janela, o olhar em silêncio para o vento e o nada lá fora – fazer tudo de novo no dia seguinte.

A cena é principalmente a descrição minuciosa de uma ação e por isso, em lugar da aparência primeira, a de um gesto muitas vezes repetido, surge sempre como a informação nova que efetivamente é. O que o espectador recebe do filme – da imagem e da música densa, insistente, repetitiva –  é um roteiro ou rascunho para a narração que vai construir. Uma indicação de que, futuro narrador, ele deve ver os personagens como se fossem as pessoas reais observadas por Béla Tarr para poder filmar as novelas de Krasznahorkai. Por isso mesmo os intérpretes de O cavalo de Turim são convidados a ir além da representação, a  reconstituir o real esforço exigido pela cena – arrastar a carroça, calçar a porta com uma pedra,  buscar água no poço, proteger-se do vento e do frio, comer a batata quente com a ponta dos dedos.

No começo, uma história contada sobre uma tela preta. No final, a imagem se apaga pouco a pouco numa tela vazia e escura. Entre um vazio e outro, são imagens para serem abraçadas pelo olhar tal como um dia, em Turim, Nietszche abraçou o pescoço do cavalo açoitado pelo cocheiro. A cena final, a tela de novo vazia e escura como a do início, volta a convidar o espectador a assumir o papel de narrador – papel talvez iniciado ainda durante a projeção. E assim, ao contar para si mesmo como abraçou O cavalo de Turim, ele não apenas torna mais rico e intenso o diálogo com o filme de Béla Tarr como, por meio dele, com o cinema como um todo.

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