O artista e seu modelo

Cinema

11.05.15

Um tema constante na obra de Pablo Picasso, espécie de reflexão sobre o processo criativo formulada em séries de desenhos, gravuras e pinturas – O artista e seu modelo –, talvez seja o verdadeiro assunto das Últimas conversas filmadas por Eduardo Coutinho, montadas por Jordana Berg e finalizadas por João Moreira Salles. Para seguir o que o filme propõe, melhor rever na memória as diversas séries de trabalhos de Picasso sobre o encontro, desafio, tensão criativa entre o pintor e seu modelo: a busca da possível (ou impossível?) realização de uma imagem capaz de retratar o modelo, e nele, no modelo, retratar também o artista.

Eduardo Coutinho em filmagem de Últimas conversas

Um bom exemplo é o retrato de Gertrude Stein que Picasso pintou entre 1905 e 1906. Depois de 90 sessões de pose, o pintor abandonou o quadro. “Apagou o rosto da tela, irritado com o resultado” – conta Gertrude em A autobiografia de Alice B. Toklas –, “disse que ia deixar assim mesmo, sem acabar”. Um ano depois, em seu ateliê, pintou o rosto de Gertrude de memória e concluiu o retrato. A tela, hoje no Metropolitan Museum of Art de Nova York, guarda as marcas da luta do artista em busca da forma ideal. São evidentes no quadro as marcas em torno do rosto de Gertrude, pintado uma e outra vez, e outra e outras mais, até o encontro não de um registro fiel da aparência do modelo, mas da expressão do que o pintor havia incorporado do modelo. No quadro, o rosto de Gertrude tanto se parece com ela quanto com ele, Picasso. Gertrude é uma figura não muito diferente do Picasso do Autorretrato pintado quase ao mesmo tempo, em 1906, no acervo do Metropolitan, e do Autorretrato com paleta pintado também em 1906 e hoje no Philadelphia Museum of Art. Em 1938, num ensaio sobre o pintor, Gertrude disse que não compreendeu por que Picasso sentiu necessidade de um modelo, nem porque o quadro foi tão criticado e motivo de zombarias. Satisfeita, reafirmava que a pintura era única imagem em que ela era ela: “para mim, sou eu” (for me, it is I, and it is the only reproduction of me in which is always I, for me).

O artista e seu modelo. O confronto consigo mesmo. O encontro com o outro: esta é imagem primeira do cinema de Coutinho. Na verdade, seus filmes parecem dizer bem precisamente: o artista é o seu modelo; é a escuta do outro; é o olhar que no diferente, no outro, encontra algo de si mesmo. É como se filmar o outro fosse repetir o comentário de Gertrude frente ao retrato de Picasso: for me, it is I. Always I, for me.

Talvez porque Últimas conversas seja, ao mesmo tempo dele, Coutinho, e de seus colaboradores, destaca-se no filme a imagem do artista ao lado do modelo. Salta a primeiro plano o que habitualmente o diretor procurava (não ocultar, mas) deixar difuso como presença que, ao se revelar, não desviasse a atenção do espectador que deveria se concentrar em seus outros/eus, e não nos sinais da luta do artista em busca do impossível (ou possível?) retrato ideal: aquele que é simultaneamente fiel ao artista e a seu modelo, aquele que retrata o personagem e nele, personagem, retrata também o diretor. É igualmente possível que a presença menos difusa do artista ao lado do modelo em Últimas conversas resulte do que ele mesmo observa para Jordana na cena montada no prólogo do filme: nos documentários anteriores, conversas com adultos sobre uma experiência vivida em algum lugar do passado; aqui, conversas com jovens sobre uma experiência em algum lugar do futuro.

Em Jogo de cena e As canções – exemplos recentes, mas a observação vale para qualquer dos documentários de Coutinho – as linhas de construção se insinuam discretamente, à margem do quadro. E em que pese a preocupação de reafirmar o filme enquanto filme, o documentário enquanto uma construção cinematográfica, as linhas de composição podem passar despercebidas, provavelmente por sua extrema economia: uma cadeira no palco de um teatro vazio; ou menos ainda, uma cadeira sobre um fundo vazio e neutro – o mínimo necessário para uma conversa joelho com joelho, tal como ele mesmo definiu. Em Últimas conversas, ainda uma vez o mínimo – o vazio e uma cadeira de frente para uma porta – mas um vazio preenchido pela presença do realizador: o quadro se refere mais que nunca ao fora de quadro. Não só porque numa introdução antes do filme propriamente dito o diretor aparece na cadeira do entrevistado – o artista no lugar do modelo. Não só porque ouvimos indicações dadas aos personagens (ao sair, deixe a porta aberta). Não só pela fumaça do cigarro que invade a imagem.

Nem só pelos comentários com a equipe no intervalo entre as conversas com os personagens. Por tudo isso e por algo não diretamente visível, uma imagem-conceito esboçada nas entrelinhas, aqui, vemos quase tanto o modelo quanto o seu artista – personagens próximos, pelo menos emocionalmente. A diferença de idade entre o diretor e seus entrevistados conta pouco. A voz fora de quadro parece falar com o mesmo humor mais ou menos aberto, com o mesmo jeito um pouco mais sentimento que razão, dos personagens. Não porque Coutinho procure fazer de conta que é um deles para melhor conduzir a conversa, mas porque a prática cinematográfica manteve viva nele uma curiosidade entre a do adolescente e a da criança. Assim, avisa antes de perguntar: vai fazer perguntas completamente imbecis. E diz mais, antes de perguntar. Diz que é um marciano. Diz que pergunta como se tivesse apenas quatro anos de idade. Noutras palavras, diz, não para o personagem, mas para o espectador, que o artista é o seu modelo.   

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