O bandido que nos ilumina

No cinema

11.05.12

Luz nas trevas – A volta do bandido da luz vermelha, de Helena Ignez e Ícaro Martins, é uma celebração do cinema de invenção e risco. Dialoga de maneira lúdica e criativa com o Bandido original de Rogério Sganzerla, de 1968, obra incontornável de nossa cinematografia moderna.

Viúva de Sganzerla e estrela do filme original, Helena Ignez se baseou em roteiro deixado pelo cineasta para realizar essa insólita continuação, na qual o velho bandido, agora vivido por Ney Matogrosso, está atrás das grades, planejando sua fuga, enquanto seu filho, o jovem assaltante Tudo ou Nada (André Guerreiro Lopes) barbariza São Paulo seguindo os passos do pai.

Se o Bandido de Sganzerla era uma colagem antropofágica de influências, unindo Godard e a chanchada, Orson Welles e a Boca do Lixo, Luz nas trevas acrescenta ainda outras camadas de intertextualidade, ao inserir trechos do filme original, glosar cenas, citar personagens, além de mimetizar sua narrativa fragmentada, seus enquadramentos oblíquos e sua locução de programa radiofônico popular.

Filme de cinema

Inácio Araujo, o crítico que mais admiro, escreveu na Folha de S. Paulo que este segundo Bandido se move num simulacro de realidade, gira em falso, enquanto o primeiro se inseria no mundo real. Discordo. Como definiu o próprio Sganzerla, era um “filme de cinema”, repleto de citações, de personagens cartunescos, de cenas estilizadas.

Claro que o Bandido de 68 falava do Brasil real, ou melhor, se engalfinhava com ele, mas esse corpo a corpo crítico o filme atual também pratica. Ao recuperar, e trazer para os nossos dias, ideias e signos que ainda estão vivos, mas que tinham permanecido como que adormecidos por mais de quatro décadas, Luz nas trevas faz valer seu título, ilumina o presente, retira-nos do estado anestesiado a que nos lançaram tanto cinema e tanta televisão ruins.

Se o país mudou, Helena Ignez também mudou. Evidência disso é que a personagem vivida em Luz por sua filha com Rogério, Djin Sganzerla – a namorada de Tudo ou Nada -, é uma versão mais doce e menos sarcástica da Janete Jane que a própria Helena encarnou em 68.

O próprio bandido, que no filme original dizia que o Terceiro Mundo iria explodir e quem estivesse de sapato não sobraria, perdeu seu gume niilista, virou um mensageiro da paz.

“Só quem não amar os filhos/ vai querer dinamitar os trilhos da estrada”, diz uma canção de Gilberto Gil. Helena Ignez, assim como o Sganzerla maduro que deixou pronto seu roteiro, parece ter chegado a um sentimento parecido.

Aqui, uma cena clássica do original, repleta de desespero, parodiada em outro registro em Luz nas trevas:

Anti-heróis libertados

O país continua torto, a boçalidade segue correndo solta, a miséria, a ignorância e a violência social perduram, escandalosas. Tudo isso está no filme, grita em cada plano, não é preciso nenhum esforço para ver e ouvir.

Para o bandido, entretanto, “o que importa é não estar vencido”, como canta Ney Matogrosso no espetacular final.

Uma última observação: também o filme mais recente de José Mojica Marins, A encarnação do demônio (2008), encena a libertação, depois de quatro décadas, de um personagem icônico, o Zé do Caixão. É como se, encarcerados primeiro pela ditadura, depois pela mediocridade do mercado, esses dois anti-heróis populares, ao mesmo tempo produto e negação de nossa miséria, revissem agora a luz. Não sei bem o que isso significa, mas deve ser alguma coisa boa.

* Na imagem que ilustra o post: Ney Matogrosso no papel do bandido de Luz nas trevas.

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