O cinema canibal de John Carpenter

No cinema

05.10.12

Os paulistanos se juntam aos cariocas e têm, a partir de hoje (5 de outubro), o raro privilégio de conhecer melhor o cinema de John Carpenter, um dos mais interessantes cineastas americanos das últimas décadas. Graças a uma parceria com o Festival do Rio, o Cinesesc estendeu a São Paulo uma retrospectiva com catorze filmes do diretor de Halloween Fuga de Nova York. Veja aqui a programação da mostra.

Por que é importante ver os filmes de Carpenter? Primeiro porque, dos mais falhos aos mais felizes, eles são sempre divertidos, não necessariamente no sentido de engraçados, mas no da palavra inglesa entertaining. Eles sempre entretêm, inquietam, prendem a atenção. Jamais entediam.

Segundo, porque há neles uma reciclagem absolutamente pessoal e criativa do cinema clássico hollywoodiano, sob a forma de uma revitalização – e ao mesmo tempo uma transgressão – dos gêneros tradicionais: policial, terror, suspense, ficção científica, comédia.

Já em seu primeiro longa, Dark Star (1974), Carpenter embaralha os registros da ficção científica, do terror e da comédia, numa trama concentrada numa nave espacial às voltas com uma bomba autogovernada e um alienígena fugitivo. Na época com 26 anos, o diretor já mostrava o talento, a energia e o despudor que marcariam toda a sua obra.

Carpenter é, antes de tudo, um cineasta visceralmente americano. Sua arte se dá no cruzamento do cinema da era dos estúdios com a cultura pop e o espírito iconoclasta dos anos 60. Sua cabeça foi feita, com igual intensidade, pelos filmes de Hawks e Ford, pelo rock, pelas histórias em quadrinhos e pelos movimentos libertários dos sixties.

Seu cinema se fez, a duras penas, na contramão da pasteurização corporativa verificada em Hollywood nas últimas décadas (e retratada brilhantemente em O jogador, de Altman). Se Dark Star é uma versão suja e barata de 2001 (e de certa forma antecipa Alien), Starman (1984) pode ser visto como uma paródia marota de E.T., na qual o alienígena (Jeff Bridges) não tem nada da inocência assexuada do extraterrestre de Spielberg.

http://www.youtube.com/watch?v=O2l8o2su1rI

Em Carpenter, as transfusões entre os gêneros são sempre fecundas, como em seu segundo longa, Assalto à 13ª DP (1976), em que se transpõe a situação do clássico Rio Bravo, de Hawks, para um bairro violento de Los Angeles, fundindo o faroeste e o policial. O cineasta voltaria a reciclar Hawks, seu diretor favorito, em O enigma de outro mundo (1982), refilmagem livre do O monstro do Ártico, de 1951. Aqui, o entrecruzamento é entre o suspense, a ficção científica e o horror.

Claro que há na retrospectiva os títulos de maior sucesso comercial do diretor, como Haloween (1978) e a fantasia apocalíptica Fuga de Nova York (1981), mas se existe um filme que merece revisão e que talvez seja a obra-prima de Carpenter, é Eles vivem (1988). Com pouco dinheiro e muita imaginação, é uma radiografia – muito mais contundente do que Matrix– de nossa época de tirania midiática, e ao mesmo tempo, com seus cândidos efeitos especiais, uma homenagem ao cinema de ficção científica de baixo orçamento de George Pal (A guerra dos mundosA máquina do tempo).

Não por acaso, seu protagonista é um operário da construção civil – com o sugestivo nome de Nada -, representado não por um ator de prestígio, mas por Roddy Piper, um profissional da luta livre. Aqui, as ideias mais profundas e radicais encontram uma expressão aparentemente fuleira, popular, plebeia, como a nos lembrar que o cinema nunca perdeu – ou não deveria perder – seu caráter de atração de feira. Ao contrário da erudição cinematográfica “europeia” e ocasionalmente pernóstica de um Hal Hartley ou um Jim Jarmusch – ou mesmo do próprio Altman -, a interação de Carpenter com o acervo centenário do cinema é de ordem quase antropofágica. Veja um momento crucial do filme, verdadeira revelação:

http://www.youtube.com/watch?v=mKp_oENe-ro

Em vez de citações e referências “cult”, que servem como piscadas de olhos à vaidade dos cinéfilos, o que esse cinema selvagem empreende é uma espécie de reanimação de corpos, com a ambição frankensteiniana de dar vida a uma combinação de membros, órgãos e tecidos que se julgava mortos. O resultado é torto, híbrido, assustador e divertido como a criatura do doutor Frankenstein.

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