O cinema falado de Martin Scorsese

No cinema

28.11.11

O filme de hoje é um livro, mas um livro que contém muitos filmes: Conversas com Martin Scorsese (Cosac Naify/Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tradução de José Rubens Siqueira). É um catatau de mais de 500 páginas de entrevistas do diretor ao crítico e também cineasta Richard Schickel.

Amigos há décadas, profundos conhecedores do cinema americano e de sua história, os dois passam em revista toda a cinematografia de Scorsese, tendo como panos de fundo a biografia do diretor e as transformações atravessadas pelo cinema nos últimos cinquenta anos. Vale por um curso.

Schickel, cabe lembrar, realizou livros e filmes dedicados ao cinema americano e seus realizadores. Entre eles, o documentário para a TV Scorsese on Scorsese (2004), do qual o livro em questão é uma versão impressa ampliada e atualizada.

Vigor e coerência

Navegando pelas páginas de Conversas com Scorsese, é possível conhecer melhor uma das filmografias mais vigorosas do cinema contemporâneo e compreender a profunda coerência entre obras aparentemente tão díspares como Caminhos perigosos e Kundun, ou Touro indomável e A última tentação de Cristo, ou ainda A época da inocência e A ilha do medo.

Em todos esses filmes estão presentes algumas preocupações recorrentes, para não dizer obsessivas, do cineasta: a traição, a culpa, a insanidade humana, as encruzilhadas morais. Resquícios evidentes de sua formação. No bairro barra-pesada conhecido como Little Italy, em Manhattan, o pequeno Martin encontrava refúgio em dois lugares bem distintos: a igreja e o cinema. Não por acaso, na infância pensou em se tornar padre e chegou a ser coroinha. Mas acabou abraçando outro sacerdócio, o do cinema.

Scorsese cantou sua turbulenta aldeia em filmes como Caminhos perigosos, Touro indomável e Os bons companheiros, nos quais infundiu muito de sua vivência pessoal: figuras que conheceu, cenas que presenciou, histórias que ouviu alguém contar.

Mas a ambição expressiva do cineasta não respeita fronteiras espaciais nem temporais: seu cinema foi à Palestina da época de Cristo e ao Tibete do Dalai Lama – e agora vai ao Japão do século XVII para contar uma história acalentada há décadas, o drama de dois missionários jesuítas no extremo oriente. (O filme se chamará, sugestivamente, Silêncio.)

Passo a passo

Conversas com Scorsese registra passo a passo a formação de Scorsese como cinéfilo, diretor, pesquisador e pensador do cinema. Das minúcias de seu trabalho – como a realização de storyboards de próprio punho, ou os ensaios exaustivos com atores – às sutilezas de suas ideias estéticas e morais, o livro fornece um quadro bastante vivo.

Os detalhes anedótico-biográficos só entram em pauta quando ajudam a entender algum momento da obra do artista. Por exemplo, é curioso saber que Scorsese não tinha o menor interesse por boxe, e portanto nenhuma intenção de filmar Touro indomável, até que seu amigo Robert De Niro o visitou no hospital – onde ele se recuperava de um colapso causado por estafa e uso de drogas – e o convenceu de que aquele era um filme talhado para sua “ressurreição”.

Curioso, igualmente, saber que o diretor de fotografia Michael Chapman e o roteirista Paul Schrader, que ajudaram a fazer de Touro indomável a obra-prima que é, não gostam do filme – provavelmente, cada um por um motivo diferente.

Prolífica como é, a obra de Scorsese faz com que o livro já nasça um pouco defasado. Ele vai até Ilha do medo, de 2010. De lá para cá, o diretor já realizou os documentários Uma carta para Elia (sobre Elia Kazan), Public speaking (sobre a escritora Fran Lebowitz) e Living in the material world (sobre George Harrison), e a aventura infanto-juvenil em 3-D A invenção de Hugo Cabret. Esta última, inspirada no livro de história em quadrinhos de Brian Selznick, deve estrear no Brasil em fevereiro. Aqui vai o trailer:

Seria exaustivo arrolar aqui as preciosidades e delícias dessa longuíssima conversa movida pelo amor ao cinema. Basta dizer que o livro não passa vergonha diante de dois congêneres tornados clássicos: o volume Hitchcock/Truffaut – Entrevistas (Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar) e Afinal quem faz os filmes? (Companhia das Letras, tradução de Henrique W. Leão), no qual Peter Bogdanovich reuniu as entrevistas que fez com cineastas como Howard Hawks, Fritz Lang, Robert Aldrich e Joseph von Sternberg. Não é pouca coisa.

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