Rock Hudson em Seconds

Rock Hudson em Seconds

O começo do fim

Cinema

27.10.16

Não é simples atingir aquele ponto em que não há mais retorno, é o que costumo elucubrar em minha condição de quase cinquentão; Seconds (no Brasil, O segundo rosto), de John Frankenheimer, chegou aos cinquenta anos em outubro de 2016. Parece prudente, portanto, verificar como reage à passagem do tempo um filme que aborda justamente a crise de meia-idade masculina diante das possibilidades abertas pela contracultura norte-americana de finais dos anos 1960. Por tabela, reflito sobre como no meio do caminho desta vida me vi perdido. É o ponto a ser alcançado, segundo o aforismo de Kafka, mas o que acontece a partir dele, quando se está solitário, sem sol e sem saída?

No filme, um banqueiro de meia-idade de Nova York, Arthur Hamilton (John Randolph), cansado da entediante vida suburbana ao lado da esposa, encomenda a uma misteriosa Firma sua morte falsa por infarto num quarto de hotel e uma nova identidade: um renascimento. Depois de passar por cirurgias plásticas que o transformam em Tony Wilson (Rock Hudson), pintor de sucesso da Costa Leste, é conduzido pela nova namorada Nora Marcus (Salome Jens) às farras e bacanais de sua segunda vida em Malibu. Mas logo Wilson se farta daquilo, pois não consegue deixar de pensar em sua encarnação passada, ou nos desejos nunca realizados que preenchiam essa existência prévia como Arthur.

A produção foi mal recebida na estreia no Festival de Cannes de 1966, e nem mesmo a indicação ao Oscar de melhor fotografia para o veterano James Wong Howe indicava que seria salva do esquecimento. No entanto, a mitologia pop passou a trabalhar a seu favor: após o famoso surto esquizofrênico de Brian Wilson, o beach boy assistiu a uma das primeiras sessões do filme e, alteradão, deduziu que o “Mr. Wilson” do filme era ele próprio. O pavor resultante da experiência fez com que o músico ficasse mais de 20 anos sem retornar a uma sala de projeção, passando à história da cultura pop como o instante crucial da derrocada de um artista de talento, mas também, mais simbolicamente, das ilusões de uma geração. Em 2016, Seconds foi consagrado em definitivo ao ser incluído na Criterion Collection.

Encarada como releitura pós-mccarthista do Fausto (e não faltam sugestões luciferinas nos diálogos com o presidente da tal Firma, interpretado por um subreptício Will Geer), ou mesmo libelo contra o sonho capitalista do American way of life, a trama toca de modo devastador em certos aspectos da juventude idílica prometida pela propaganda da indústria farmacêutica e a publicidade subliminar das mais variadas commodities, dos cigarros aos automóveis, cujo alcance ganharia nas décadas seguintes desdobramentos — científicos, filosóficos e existenciais — impensáveis ao público que rejeitou em massa a produção de Frankenheimer lá atrás, em 1966.

Na época, a cirurgia plástica ainda remetia somente aos resultados pouco desejáveis conseguidos pelo jovem dr. Frankenstein em suas experiências científicas, o que impossibilitava pensar nos usos cosméticos e medicinais de hoje. Transplantes de rosto de pacientes gravemente feridos não passavam de ficção científica. Tony Wilson antecipa a rejeição sofrida por praticamente todos os pacientes que receberam um transplante total de rosto. É notável como a pele é crucial para o nascimento (idem ao “renascimento” proposto por Seconds). “Faça-se à minha imagem e semelhança”. Desde o princípio é assim. O homem descobre a própria pele, acessa-a pelo tato, em duas ocasiões de sua vida: na adolescência, limpa-a da acne, estica o couro do pênis em sessões furiosas de masturbação. Na meia-idade (é o meu caso), volta à pele ao perceber como ela se desgruda da carne, como se metamorfoseia em pelanca. As injeções de silicone e botox deformam essa flacidez que nos transforma em outro, em alguém que derrete diante do espelho. Ao fazer isso cria os monstros que habitam as cidades, pessoas pertencentes a uma única grande família: as vítimas do vício em cirurgias plásticas (viciados em juventude?). Gente que tem o mesmo rosto pré-fabricado em algum catálogo de clínica geneticista.

Após se arrepender da liberalidade vazia da vida de artista ao lado da exuberante Nora (ela própria uma renascida), Wilson regressa ao subúrbio onde viveu como Hamilton, apresentando-se à antiga esposa (sua viúva, portanto) como amigo do marido falecido. Gostaria de conhecer melhor os anseios de Hamilton, pois admirava suas aquarelas, apesar de amadorísticas, e pretendia guardar uma delas como lembrança. O primeiro choque se dá ao descobrir que a viúva se desfizera de todos os objetos, e transformara seu antigo estúdio em sala de estar. Escuta a descrição feita pela esposa de Arthur com a franqueza típica de alguém desconhecido: “Era um bom homem, mas vivia aqui como um estranho. O que mais lembro dele são seus silêncios. Lutou muito pelo que o ensinaram a querer e quando conseguiu, ficou mais e mais confuso.” E a viúva encerra: “Arthur morrera há muito, muito tempo antes de o encontrarem naquele quarto de hotel.”

Ao comentar Seconds no documentário The Pervert’s Guide to Ideology (Sophie Fiennes, 2012), Slavoj Žižek considerou que Wilson, ao fracassar na tentativa de renascimento, “vive num ambiente totalmente novo, tem nova profissão e novos amigos etc. O que permanece idêntico são os seus sonhos, que serviram à Firma para lhe providenciar nova existência.” Observo meu rosto no espelho na tentativa de reconhecer o adolescente que o habitou: sumiu. Agora ocupa o reflexo um quase-velho, quase-gordo, quase-morto (a metade da vida, não é esta a causa da crise?), um homem cuja aparência estranha adquire a aparência de um pastor de cabras mongol no exílio, calvo, de barba grossa, o nariz antes nulo enfim começando a existir; os cabelos se foram há muito. Repuxo a pele do antebraço. Está baça, pouco resistente: parece que vai se soltar do osso, e meu esqueleto chegará desnudo à linha de chegada. “Porém são sonhos equivocados”, diz Žižek na tela do computador, “que refletem a ilusão consumista de nossa sociedade”. O filósofo esloveno também deve se parecer muito pouco com a foto 3X4 do rapaz colada em sua primeira carteira de identidade. Mal reconheceria seus sonhos de então, se pudesse ao menos se recordar deles.

Para além da “distopia marxista” da visão de Frankenheimer (o cineasta declarou em entrevista à época do lançamento que o filme protestava contra “a crença de que tudo o que se precisa na vida é ser bem-sucedido financeiramente e o absurdo de que devemos ser eternamente jovens”), a narrativa da crise de meia-idade como ponto de virada existencialista adquiriu nas últimas décadas o páthos que alimentou os melhores teledramas do período, tais como The Sopranos, Mad Men e Breaking Bad, apoiando-se no protagonismo de cinquentões postos à prova em situações limite: Tony Soprano, rei destronado e anacrônico diante da decadência do clã; Don Draper e a desesperada procura por afeto no sexo; o medíocre Walter White e sua redenção através do crime.

Tony Wilson, ao se ver decepcionado com o renascimento, ao se deparar com novas frustrações, regressa à Firma; em diálogo com o velho presidente, este lamenta por ele não ter conseguido realizar seus sonhos. Wilson considera que talvez não tivesse nenhum sonho, mas gostaria de tomar as próprias decisões no renascimento seguinte: não suporta a perda do livre arbítrio. Mal sabe ele, porém, que seu corpo agora servirá de cadáver substitutivo a um novo “renascido”. Então o velho presidente da Firma lhe diz que “a vida se constrói sobre desejos”, as mesmas ilusões apontadas por Žižek, sonhos equivocados impulsionados pelo poder. Na mesa de operação em que é simulada sua morte em um acidente automobilístico, Wilson obtém enfim seu sonho, a miragem que nos faz prosseguir esvaziados até o último instante, mero reflexo a surgir no holofote cirúrgico: mostra a imagem desfocada de um homem adulto que carrega um menino nos ombros, brincando na praia. A infância.

E é aqui, no momento da morte, que aquele ponto sem retorno kafkiano da abertura deste texto se encontra com Peter Pan, cujo primeiro parágrafo diz: “A gente sempre sabe, quando tem dois anos. Dois é o começo do fim.”

, , , , , , , , , , ,