O conhecimento dos corpos sem GPS

Correspondência

24.01.13

Clique aqui para ler a carta anterior.                     Clique aqui para ler a carta seguinte.

Caríssimo Xico,

Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai bem, você vai bem demais com essa gostosona que te acometeu assim, sem mais, logo na véspera de nossa correspondência. Quem mo dera tamanha sorte e assunto para manter atenta a plateia desta exibição digital entre o repentista pernambucano e o fadista lusitano, os dois empenhados em desvendar o que vai por trás – é esse mesmo o assunto que nos move a correspondência? – das portas de seus cafofos.

Esse negócio de bater porta me lembra a música do Lupicínio, aquela do “eu estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater”, mas definitivamente não é dela que estamos falando. Também não estamos falando aqui da porta do Jack Nicholson. Investigado por um delegado de Hollywood sobre por que pagava garotas de programas, se ele podia ter as mulheres que quisesse, Jack foi sincero: “Eu não pago pra elas transarem comigo, doutor, eu pago pra em seguida elas baterem a porta e saírem de cena”.

Estamos bem na batida das portas, meu bom Xico, e olha que a última vez que eu abri a minha, fi-lo com muita desconfiança. Somos leitores de Drummond, sabemos muito bem que o amor bate na porta, o amor bate na aorta, mas quem não tiver cuidado, como foi o caso do poeta, acaba se constipando. Eu tenho pegado leve com esse negócio de mulher batendo a porta. Já vi porta rangendo os dentes e aos gritos de “nunca mais, paspalhão”. Também já vi porta servindo de cama. Você, como sempre, foi na mosca. Há quem leia o destino na borra do café, há quem leia o futuro no cocô do passarinho. Nada contra, mas é na batida da porta que está o segredo do amor.

De nada me queixo, Xico, mas não por acaso há uma meia dúzia de meses troquei de porta. Comprei uma dessas com fechadura de senha. Coloquei no segredo o nome de uma mulher só e disse o código só pra ela. Temos ido bem nesse pacto. É o nosso Rosebud. Essa mulher acabou de sair daqui e, pelo jeito que bateu a porta, acho que voltará muitas outras vezes e, se Deus quiser, me fará o pão doce em que é mestra, o beijo de lichia em que é rainha. A propósito, ela mandou um salamaleque de boas-vindas para a sua gostosona e, com aquele sorriso branco que acomete os anjos negros, disse que quer medir forças.

Enfim, querido Xico, eu tenho estado muito otimista com esse movimento da minha porta, o abre-te-Sésamo que instalei para controlar a portaria do meu ainda há pouco tão esculhambado condomínio amoroso – e isso literariamente pode não ser bom. Você sabe. O amor quando dá certo não rende manchete de jornal nem crônica que provoque milhões de compartilhamentos no blog do instituto. Com toda sinceridade, Xico. Sopra uma brisa vinda da praia de Ipanema, vejo umas garças sobrevoando a Lagoa. Eis as notícias deste balneário.

Eu já pude escrever, tinha o assunto mas me faltava o talento, essa nova música do Caetano, de que o lugar mais frio do Rio é o seu quarto. Troquei o disco. Ando mais para aquele texto do Rubem Braga, “Os amantes”, em que o casal tranca-se durante uma semana no apartamento e devota-se às causas mais urgentes da espécie. O beijo de boca grossa, cheio de cacófato, sem pressa. O conhecimento dos corpos sem GPS, os dedos se deixando perder em cada curva do caminho.

Desculpe se o decepciono, grande Xico, mas hoje não tem Antonio Maria, aquele que inchou até explodir o coração no uísque mais vagabundo, aquele que teve a tristeza de encontrar a ex-amada no meio da rua e lhe perguntar, fingindo-se banal, como ia a saúde dela. Quer pior?

Outro dia, numa dessas rápidas saídas em que fui investigar como estão as coisas, para ter o que noticiar no jornal, passei por um colega nosso, desses que ganham a vida escrevendo sobre o que vai no moderno da alma feminina. O homem estava um trapo. Rosto amassado, batia boca com a mulher no meio da calçada. Eu fiz o elegante. Apressei o passo, abaixei o rosto para que ele não me visse e fui em frente, a tempo, no entanto, de ouvi-lo num lamentável “assim não dá”.

Assim não dá, digo eu, baixinho, e deixo o amor soltando os cachorros lá fora. Digito o nome dela na fechadura da porta e ponho-me aqui dentro, Dave Brubeck martelando a tecla do piano com o “Blue Rondo a la Turk”. Hoje não tem a Amália Rodrigues de costume, os xales negros de sempre, e as ameaças de “você me paga, sua bandida”, com os punhais envenenados no peito das traidoras. Hoje não tem pé na bunda, meu bom Xico, nem boletim de ocorrência na delegacia mais próxima. Pega a tua gostosona daí, eu pego a minha daqui. Amaralina é longe. Vamos viver de brisa aqui na Ipanema da esquina.

Abraços e aquela simpatia carioca que, você sabe, é quase amor.

Joaquim

* Na imagem que ilustra a home do post: a praia de Ipanema por Jessica Aquino.