O descobrimento do Brasil

Música

22.08.11

Nesta terça-feira, dia 23, o Centro Cultural do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro recebe o cantor e compositor Moraes Moreira e seu show em que apresenta – acompanhado do filho, Davi Moraes – as composições do antológico disco Acabou chorare (1972), obra do grupo Novos Baianos, que integrava ao lado de Baby Consuelo, Pepeu Gomes, entre outros. No texto abaixo, Luiz Fernando Vianna conta sobre a concepção do disco e as virtudes do grupo.

 

Era 1970, quando a campainha tocou naquele populoso apartamento da rua Conde de Irajá, em Botafogo, coube a um dos mais novos e mais roqueiros da turma conferir o olho mágico, para onde saltou uma indumentária aprumada, em nada combinando com a atmosfera psicotrópica do lugar.

– Pintou sujeira, pintou! Um cara todo na linha, que deve ser da polícia – alarmou Dadi, segundo relato escrito anos depois por Moraes Moreira, um dos jovens decanos da comunidade hippie e que, dias antes, na companhia dos amigos Galvão e Paulinho Boca de Cantor, fora à casa daquele senhor ouvi-lo cantar e tocar violão.

Os três não reconheceram a batida de João Gilberto, mas alguém viu que era o criador da bossa nova quem estava do outro lado da porta. Ao fazê-lo entrar, os Novos Baianos entraram para a história, pois até então eram um grupo batizado por acaso – por um produtor do Festival da Record de 1969 – e que fazia um sarapatel de estilos com bom tempero, mas sem uma ideia que o tornasse capaz de olhar para o passado, fincar os dois pés no presente e voar para o futuro.

Uma atitude roqueira
Completamente a serviço
Assim como quem descamba
Agora já estava inteira
Centrada num compromisso
Caindo de vez no samba

É em forma de cordel que Moraes conta a transformação da trupe no livro A história dos Novos Baianos e outros versos (Língua Geral, 2007), que ele adaptou para o palco em shows que faz com a participação de seu filho Davi Moraes, nascido naquela época, em 1973.

Na sua fase A.J. (antes de João), o conjunto ainda se chamava Os Novos Bahianos, como aparece na capa do primeiro disco, É ferro na boneca!, gravado em São Paulo em 1969. Tudo começara em Salvador, onde Tom Zé, o turbilhão de Irará, apresentou o melodista Moraes, nascido em Ituaçu, ao letrista Galvão, de Juazeiro. Enquanto compunham compulsivamente, formavam o grupo: Paulinho já era cantor de certa notoriedade, crooner de orquestra; da musical família Gomes vieram o guitarrista Pepeu e o baterista e cavaquinista Jorginho; niteroiense em busca de aventuras baianas, Bernadete Dinorá virou a cantora e ritmista Baby Consuelo, assumindo a personagem que fez em Caveira my friend, filme de Alvaro Guimarães que se tornou um dos expoentes do cinema underground brasileiro no qual quase todos trabalharam; e, após o show O desembarque dos bichos depois do dilúvio universal e a despedida de Salvador, seriam integrados no Rio e em São Paulo o baixista Dadi e os percussionistas Baixinho e Bolacha.

Embora no disco de estreia houvesse mambo, tango, xote, até samba, ainda era o rock a influência mais pesada, ecoando a hegemonia mundial conquistada por Beatles, Rolling Stones e outras bandas. As coisas mudaram após Galvão promover o primeiro encontro com o conterrâneo João, que apresentou aos jovens o Brasil: Noel Rosa, Ary Barroso, Assis Valente. Deste, foi direto: “Vocês precisam cantar ?Brasil pandeiro'”. O samba que Carmen Miranda dispensara e os Anjos do Inferno lançaram em 1941 estava esquecido, mas era um programa filosófico a explicar e revirar o tropicalismo, ao qual os Novos Baianos estavam ligados por afinidade conceitual e geográfica. Com a escolha de abrir o segundo disco, em 1972, dizendo que “o Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada” e “nós queremos sambar”, os Novos Baianos mudavam os rumos próprios e sinalizavam outros para a vida de artistas e plateias nacionais.

No LP Acabou chorare começou o choro, o samba, encolheu o rock. O impacto foi inversamente proporcional ao volume dos arranjos, quase todos assentados sobre o violão de Moraes, deixando clara a influência de João. Pepeu não largou completamente sua guitarra, mas estendeu seu virtuosismo para a craviola e o violão solo. Formou-se mesmo um regional, ainda que com liberdades em relação à estrutura dos conjuntos tradicionais que tocavam samba e choro. “Descobriram o silêncio”, escreveu o poeta Augusto de Campos no encarte.

“Acabou chorare”, “Preta pretinha”, “Tinindo, trincando”, “Swing de Campo Grande”, “Mistério do planeta”, “A menina dança”, “Besta é tu”, até mesmo a instrumental “Um bilhete pra Didi”… É difícil quem não conheça ao menos parte dessas músicas, tamanho sucesso fizeram e ainda fazem, quando são regravadas ou tocadas por DJs. E elas trouxeram também, à época, a impressão de que a vida hippie era possível: todos os Novos Baianos tinham se mudado para um sítio em Vargem Grande, o Cantinho do Vovô, onde o dinheiro era coletivo (posto num saco atrás de uma porta) e os dias eram passados à base de música, substâncias diversas e futebol.

Assim, um tanto à distância e sem discurso político direto, fizeram sua contestação à ditadura militar. Era um “estado de sítio”, como brinca Moraes.

E também assim foram criados Novos Baianos Futebol Clube (1973) e Linguagem do alunte (1974). Depois, Moraes saiu para criar os filhos e fazer carreira solo, Dadi foi embora em seguida, e o grupo resistiu até 1979, ainda que com menos força musical e, sobretudo, comportamental. Mas o sonho não acabou: foi desdobrado em caminhos diversos, na banda A Cor do Som, na influência sobre Marisa Monte e inúmeros artistas. Esses Baianos, além de vivos, continuam Novos até hoje.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: capa do disco Acabou chorare (1972)

 

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