O ensaio a partir da experiência pessoal – Quatro perguntas a Francisco Bosco

Quatro perguntas

10.10.12

Alta ajuda, primeiro livro lançado pela editora Foz (de Isa Pessoa), reúne ensaios originalmente escritos por Francisco Bosco para o jornal O Globo e a revista Cult – e agora reescritos. Tratar artigos publicados na imprensa, sobretudo numa coluna de um jornal de grande circulação, como ensaios soa estranho e até pernóstico. Mas esta tem sido a marca de Bosco: conseguir aprofundar temas que tendem a ficar na superfície do noticiário. Aos 36 anos, o filho e parceiro do compositor João Bosco explica nesta entrevista por que se vale da primeira pessoa em seus textos e sua recusa do papel de especialista, preferindo escrever sobre “os problemas da vida”.

1 – Talvez até pelo fato de os textos terem sido reescritos, não há no livro as datas em que eles (ou o que eles eram) foram publicados na imprensa. O que se ganha e o que se perde ao retirar referências à época em que os artigos nasceram, já que parte deles se inspirou em temas do momento?

Essa pergunta toca numa das questões decisivas desse livro. Embora originalmente destinados a veículos efêmeros (jornais e revistas), os textos do livro pertencem ao gênero ensaístico. O ensaísmo, tal como o entendo e pratico, é um gênero teórico, e a teoria se diferencia da reportagem e da crônica, gêneros estes mais ligados às datas. Assim, se é verdade que muitas vezes trato de temas “do momento”, trato-os procurando revelar neles uma espécie de lei invariável, e o invariável dispensa a data. Se trato, por exemplo, da prisão do traficante Nem, é para pensar o funcionamento estrutural da Justiça no Brasil, e essa estrutura não data de um dia só, de um acontecimento só. Portanto essa ausência de datação – que só não foi deliberada porque nunca cheguei a me colocar a possibilidade contrária – é um traço constitutivo do gênero teórico-ensaístico em que esses textos desejam e acreditam se inscrever, apesar de sua brevidade e de sua origem.

2 – Você escreve frequentemente na primeira pessoa, inclusive referindo-se a fatos de sua vida. Como essa opção contribui para a sua proposta de fazer ensaios sobre aspectos do cotidiano?

O que me parece decisivo quanto a essa observação é o seguinte: o que importa para mim, enquanto ensaísta, é que a experiência pessoal sirva à compreensão da natureza de fenômenos impessoais. Sirvo-me de meus amigos, não para falar deles, mas para pensar a natureza da amizade. Sirvo-me da memória de um colega se atirando em campo, não para falar da minha infância, mas para revelar a relação entre a vocação que os jogadores de futebol brasileiros têm para driblar a lei (e não na lei) e o modo como a legalidade se dá na formação social do país.

3 – Vivemos na era dos “especialistas”, mas você escreve sobre psicanálise, filosofia, literatura, cinema, música, futebol, relações amorosas etc. Parece haver uma deliberação sua contra a especialização, retomando o papel original do intelectual. No entanto, você chega a temer o risco de uma dispersão excessiva?

Deleuze dizia que há duas formas de escrever: dentro de uma disciplina, ou de fora dela, nas suas fronteiras. Eu pertenço ao segundo caso. O risco de quem escreve de dentro de uma disciplina é o exercício exegético tão minucioso quanto repetitivo, obsessivo, pouco inventivo. O maior risco de quem trabalha de fora talvez seja a ignorância, que pode limitar o alcance interpretativo. Mas o que me importa mesmo dizer sobre isso é o seguinte: eu escrevo sobre os problemas da vida, e problemas não pertencem a territórios discursivos. Cada território discursivo (filosofia, psicanálise etc.) aborda alguns desses problemas da uma maneira específica. Eu procuro solicitar essas diversas abordagens dependendo do problema de que quero tratar. Mas não tenho compromisso com os territórios, e sim com os problemas, que são extra- ou pré-territoriais.

4 – O que você percebe que se espera de você agora que é colunista de jornal? Recebe pedido de opiniões sobre tudo? Como administrar a reclusão que você diz ser necessária com a possível demanda crescente por uma presença pública maior?

É verdade, são lógicas diversas que estão em jogo. A lógica do jornalismo e da cultura lida com inflação do eu, restrições variadas ao pensamento (do espaço à dificuldade da linguagem, passando pela ideologia), certa promoção de equívocos quanto a quem você é (o “sucesso” é sempre uma alienação). Já a lógica do pensamento lida com deflação do eu (é sempre o impessoal que interessa), duração, precisão etc. Encaro essa tensão com desassombro. Vejo nela principalmente a tensão entre o eu (o ego, a promoção de si) e o não-eu (o pensamento, em suma). Viver excessivamente no registro do eu é lamentável (vida de celebridade), mas viver excessivamente no registro do impessoal pode levar à morte, por pobreza econômica, drogas ou, digamos, falta de estrutura psíquica (vida de poeta romântico).

* Na imagem que ilustra o post: o ensaísta Francisco Bosco (crédito da foto: Bruno Veiga)

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