O espectador furioso

Colunistas

08.10.14

Há alguns meses, fui atacado em um jornal francês, por causa de uma peça que escrevi. A crítica dizia que meu texto não ficava nada a dever às telenovelas que assolam o continente latino-americano. Mais que preconceituosa ou inverossímil (a peça podia ser tudo, menos uma telenovela latino-americana), era a crítica de uma pessoa fora de si.

Eu já vinha acompanhando o processo da montagem em apresentações prévias e prestando atenção nas reações do público. Como as cenas aconteciam em lugares diferentes dentro do mesmo espaço, obrigando o público a se deslocar, havia sempre alguém que ficava para trás, deliberadamente de costas para os atores ou com a cabeça caída entre as mãos, em uma clássica manifestação de desespero, ou, já na fase seguinte, de resignação, olhando para o além.  

É claro que não vou defender a tese onipotente de que a exasperação da crítica ou do público tem necessariamente a ver com o mérito provocador das peças. Também não sou dos que acham que crítica tem que ser “construtiva”. Costumo me manifestar com veemência contra as coisas que abomino, torcendo para que desapareçam para sempre. E tenho de confessar que, há alguns anos, chutei um ator do mesmo grupo, em legítima defesa, quando ele pulou em cima de mim no meio de um espetáculo do qual, por razões de ordem física, era impossível escapar.

A crítica do jornal francês, entretanto, me pôs num estado peculiar. A peça fazia parte da programação oficial de um festival de teatro em uma cidade do sul da França onde durante um mês tudo gira em torno do evento. No dia em que a crítica foi publicada, bastava alguém me dar bom-dia para eu começar a minha ladainha, repetindo sem parar que tinha sido atacado, que aquilo era má-fé ou burrice, que tinham comparado o texto às telenovelas que assolam o continente latino-americano etc., até que uma das coordenadoras do festival, cansada de me ouvir, sugeriu que eu fosse conversar com um senhor recolhido à dignidade do seu silêncio: “Por que você não fala com ele? Olha só: Ele também foi atacado pela crítica”.

Era o encenador de um dos carros-chefes do festival. Também tinha sido violentamente atacado. Só que, o que era bem pior, por uma crítica bem mais inteligente do que a que comparou meu texto a uma telenovela latino-americana. Ele me disse: “Pra você ou pra mim, tanto faz. Mas para os atores é irreparável. A crítica instila uma tristeza da qual nunca mais se recuperam. São eles que têm de voltar toda noite para encarar o público”.

Tudo isso para dizer que fui com um casal de amigos holandeses assistir a um espetáculo de dança no fim de semana passado, em Antuérpia. E que o espetáculo me deixou tão louco quanto tinha ficado a crítica do jornal francês depois de assistir à montagem da minha peça. Nunca imaginei que uma dança pudesse ser a expressão física da burrice. Pois foi o que vi, sentado na primeira fila, quicando de raiva, enquanto à minha volta as pessoas riam (um pouco) e aplaudiam (também não efusivamente).

O que me fez perder a cabeça, a ponto de sair da sala esbravejando, foi a sensação de impostura, de que estavam querendo me vender gato por lebre. A dança não era nada além da expressão da vontade de fazer alguma coisa original, mas sem que soubessem o quê, sem nenhuma originalidade, nenhum rigor e  nenhum sentido, como se os seis bailarinos no palco estivessem dançando às cegas, à procura de uma ideia e de um coreógrafo, mas sem a radicalidade que um projeto assim concebido poderia ter. Eram só uns rapazes simpáticos, fazendo uns movimentos convencionais e dizendo, de vez em quando, uma suposta gracinha, sem humor e sem maiores consequências. Era um espetáculo inofensivamente narcisista, tolo e sem riscos.

É claro que correr riscos não basta para ser original, mas é a sua condição de possibilidade. Um espetáculo que, além de conseguir a façanha de expressar a burrice fisicamente, não corre nenhum risco está morto ao nascer. E embora também fosse a reação a uma suposta impostura, a fúria que a crítica francesa manifestou em relação à minha peça era diametralmente oposta à minha em relação ao espetáculo de dança. Se faltava alguma coisa na montagem apresentada no festival no sul da França, certamente não era a coragem de correr riscos.

Até o fim de semana passado em Antuérpia, eu achava que tivesse perdido para sempre esse casal de amigos holandeses, por causa da minha peça. Meses atrás, eles fizeram 200 quilômetros de carro só para assistir à peça. E voltaram pra casa no dia seguinte sem se despedir de mim. No final do espetáculo, diante da expressão transtornada dos dois, achei melhor não perguntar se tinham gostado. Para quebrar o gelo, recorri ao subterfúgio de perguntar apenas o que acharam das cenas faladas em holandês (duas delas tinham sido traduzidas para o holandês por gente competente, que fala holandês em casa). Era uma pergunta objetiva e técnica, por assim dizer. Reconhecendo um canal para escoar sua fúria, minha amiga holandesa não perdeu a oportunidade, rebatendo à altura, com uma resposta técnica: “Suspeito que estejam gramaticalmente erradas”.

Passamos meses sem nos falar. Nesse meio-tempo, amigos brasileiros que não conhecem minha amiga holandesa a apelidaram carinhosamente “a neonazista”. Voltamos a nos ver no fim de semana passado, como se nada tivesse acontecido. Foi adorável. Ela gostou muito da dança que me deixou louco de raiva. E não voltamos a falar na minha peça.

,