O espólio de cada um

Colunistas

10.07.14

Espólio, herança e legado são palavras mais ou menos equivalentes no dicionário. Desde que alguém decidiu por uma tradução literal de “legacy” – por alguma insondável razão, herança não era bom o suficiente – a palavra legado entrou no cotidiano, foi impressa nas páginas de jornal e frequentou os discursos e documentos oficiais. Com a goleada histórica no Mineirão e a antecipação do fim da festa brasileira, o que sobra pode ser chamado de espólio, palavra que também é sinônimo de espoliação ou restos. A seleção e a CBF vão ser obrigados a recolher o espólio da derrota, analisada aqui por José Geraldo Couto como resultado de um ufanismo infantil que – do um ponto de vista de uma leiga em futebol, como eu – serviu perfeitamente à velha aliança do futebol com o nacionalismo patriótico e ainda foi agravado pela realização dos jogos no país.

Nos últimos anos, enquanto o “legado da Copa” se tornava um bordão oficial, crescia na mesma proporção o “imagina na Copa”, expressão da descrença de que cidades marcadas por problemas urbanos, sociais e econômicos pudessem vir a receber um imenso fluxo de turistas dispostos a festejar o maior campeonato de futebol do mundo. As dimensões continentais do país, a decisão de espalhar os jogos da fase de grupos por cidades muito distantes entre si, como Porto Alegre e Manaus, contribuiu para reforçar esse descrédito.

“Imagina na Copa” passou a ser o mote diante de tudo que dava errado na vida cotidiana. Engarrafamentos de 150km em momentos de pico em São Paulo, resultado de uma política econômica de incentivo fiscal à indústria automobilística e baixos níveis de investimento em transporte público; operações aéreas marcadas por um mercado controlado por poucas empresas, livres para praticar preços altos; deslocamentos rodoviários longos, proporcionalmente caros, e na maioria das vezes desconfortáveis; serviços cotidianos marcados pelo “jeitinho” do brasileiro cordial, que como se sabe nada tem a ver com simpatia ou atitude amistosa; preços exorbitantes aliados à falta de planejamento urbano adequado à vida cotidiana de quem sai todos os dias de casa para trabalhar. 

Se é assim na rotina, imagina na Copa, quando esse cotidiano massacrante teria que se haver com hordas de visitantes estrangeiros exigentes de um desempenho que as capitais não dispõem para oferecer a seus moradores. O desencaixe, no entanto, é evidente. Apesar das dificuldades que as cidades-sedes enfrentaram, os problemas urbanos que nos atravancam a vida todos os dias não incomodaram o turismo nem atrapalharam o clima da festa. Embora a polícia militar tenha se mostrado brutal, sobre o comportamento da PM nunca pudemos dizer “imagina na Copa”, porque essa manteve a nossa velha conhecida combinação entre arbitrariedade e violência, como tão bem denuncia a Anistia Internacional.

Com o “imagina na Copa”, as grandes cidades brasileiras expressavam uma expectativa de insuficiência em relação ao que viria a acontecer em junho de 2014. Se essa expectativa negativa não necessariamente se confirmou – apesar da tragédia da queda do viaduto em BH – existe um ponto de inflexão para pensar as capitais brasileiras como cidades globais, aqui tomadas como aquelas que ignoram seus problemas locais em nome da subordinação a um projeto em nada articulado com as demandas da vida social ali organizada. Seus problemas locais estão à mercê do interesse do capital internacional, cujos interesses se sobrepõem aos dos governos locais, uma conjuntura global a qual o governo brasileiro aderiu, é verdade, mas que como fenômeno precisa ser pensado em termos globais. Com a vantagem de que, pensado na sua dimensão internacional, o problema escapa do debate eleitoreiro, cuja redução ao contra ou a favor impede qualquer reflexão e torna a questão superficial.

Como ensina o geógrafo inglês David Harvey, a realização de megaeventos é uma estratégia do capitalismo global para fazer o dinheiro circular, razão de sua comparação entre o fluxo do capital e a corrente sanguínea no corpo humano. A estratégia da submissão da política urbana aos interesses do capitalismo tem vigorado pelo menos desde a Paris do Segundo Império, quando a cidade foi reconstruída como forma de resolver o problema do capital e do desemprego por meio da urbanização. Qualquer semelhança com o Brasil de 2014 não é mera coincidência. As cidades-sede se tornaram globais e subsumidas às regras do capital – aqui atendendo pelo nome de Fifa ou COI –, ordenadoras de um projeto urbano dissociado da vida cotidiana das cidades.

O quadro é particularmente dramático no Rio de Janeiro, de onde sai a Fifa mas permanece o COI, e com ele uma política municipal na qual é impossível encontrar os traços de um plano de governo que não seja um projeto olímpico para 2016. Nos idos dos anos 1990, quando o Rio de Janeiro parecia afundado numa crise econômica sem saída, havia uma grande quantidade de discursos em prol do investimento na indústria do turismo como forma de sair do buraco. Os megaeventos vieram para impulsionar essa indústria, e com ela os preços exorbitantes, a bolha imobiliária, e a sensação cada vez mais presente aos moradores de que o Rio de Janeiro global é uma cidade estranha ao seu morador.

Até porque, na “minha cidade” não havia mesmo condição de a Copa dar certo. Andamos diariamente em ônibus lotados, metrôs idem, os engarrafamentos há muito superaram o padrão São Paulo, e todas as placas a apontar “Maracanã” não podem ser classificadas como política de mobilidade urbana. O Rio de Janeiro acaba por passar por uma experiência de cidade global só possível por um regime de exceção, com idílicos feriados a esvaziar as ruas dos engarrafamentos com os quais voltaremos a nos confrontar a partir de segunda-feira.

Todos os dias, durante a Copa, mesmo antes da derrota para a Alemanha, tive alguma sensação de estranhamento. Nada a ver com o sentimento do jornalista Arthur Dapieve, que ainda nas quartas de final já dizia que vergonha não é perder em casa, vergonhoso é não jogar xongas. “Estar em casa”, durante a Copa, era o meu problema. Andar nas ruas confirmava uma sensação de estranhamento em relação ao que aprendi a chamar de “minha cidade”. Há transformações por toda parte, mudanças incompreensíveis para quem vive e mora no Rio, indicações diárias de que quem manda na capital é o capital.

A rigor, nós todos deveríamos saber disso desde que estudamos na escola que Portugal saiu em busca de especiarias e encontrou o Brasil por acaso, quando na verdade tratava-se de uma expansão marítima resultado da velha aliança entre estado, igreja católica e finanças. Também aprendemos que os Sá vieram para o Rio de Janeiro expulsar os franceses, quando o que estava em jogo era a extração de pau brasil no litoral fluminense. Por fim, nós, cariocas, aprendemos que só nos transformamos numa cidade de padrão europeu com a chegada da corte portuguesa, em 1808, nem tanto pelo ridículo da fuga dos avanços de Napoleão sobre Portugal, mas porque instalou-se aqui um projeto de poder estabelecido a partir da lógica do capital colonizador europeu. Dois séculos depois, mudou o nome dos donos do dinheiro.

 

Foto do destaque de Evaristo Sá.

, , , ,