O jogo da leitura e os livros-jogo

Literatura

14.07.13

Escolha sua aventura

Se sua infância aconteceu nos anos 1980-90, provavelmente você se lembra dos livros-jogo. Livros que, em vez de seguirem uma história linear, param e pedem ao leitor que tome decisões pelo personagem – digamos, “O que você faz: atravessa a ponte ou entra na caverna?” Assim, o leitor tem o poder de afetar o rumo da trama e chegar a um dos vários finais disponíveis. As principais coleções do gênero no país foram a Enrola e desenrola/Escolha a sua aventura (de Edward Packard, adaptada por Orígenes Lessa) e a Aventuras fantásticas (de Steve Jackson e Ian Livingstone).

Esse traço interativo e lúdico dos livros-jogo foi diretamente inspirado pelos RPGs (Role-Playing Games), jogos de interpretação de personagens que usam dados e, geralmente, um livro com uma história-base. Eles fizeram fama na mesma época e até hoje têm seus adeptos.

Outro dia me dei conta de um fato curioso. Todos os meus amigos que hoje leem muito foram fãs de livros-jogo quando crianças. Todos. Um deles, o compositor Dimitri BR, contou que, certo dia, no primário, levou um desses livros para o colégio e a professora decidiu ler o primeiro trecho em voz alta, conclamando os alunos a votarem na opção que julgassem a melhor. A turma, empolgada, aceitou o desafio e foi exercendo a democracia – com fortes e apaixonadas discordâncias. Quando caíam num final ruim, quem tinha “votado errado” era impiedosamente escarnecido, e a votação recomeçava de um ponto anterior.

Mas o jogo não seria um estímulo fácil, que afasta os jovens da leitura e não leva a nada? Não é bem assim. A regra do jogo, assim como a escolha oferecida por um livro-jogo, é um metatexto: ela também diz coisas de um jeito que pode ser considerado artístico. Porém, mesmo que não queiramos ir tão longe, o livro-jogo é um excelente treino para a leitura de livros tradicionais, com um único final. São as ideias de Gregory Bateson e Wolfgang Iser que ajudam a especar essa intuição em solo um pouco mais firme.

Gregory Bateson fez de tudo um pouco. Foi um acadêmico atípico, que conseguia ver conexões complexas em fenômenos aparentemente simples. Formado em biologia e zoologia, seu primeiro emprego foi como antropólogo, investigando povos da Nova Guiné e de Bali. Seus trabalhos com Margaret Mead, como Naven (1936), hoje são considerados clássicos. Durante e após a Segunda Guerra, ele se envolveu com cibernética e teoria dos sistemas, associando-as com a psicanálise para tratar pacientes de um hospital militar. No fim da vida, estudou a comunicação entre cetáceos. Seu campo de pesquisa ficou conhecido como ecologia da mente, termo que compreendia melhor os cernes de seu trabalho: o papel crucial da comunicação na epistemologia humana (e mamífera) e a inescapável conjugação mente-natureza.

Bateson percebeu que, entre os animais, há diversos modos de interação, que por sua vez são caracterizados por diversos níveis de mensagens. Há mensagens que falam sobre mensagens, as metamensagens; há mensagens sobre mensagens sobre mensagens, as metametamensagens; e assim por diante.

Certa vez ele foi ao zoológico e viu dois macacos brincando. Vistas de forma isolada, as ações da sequência (mordidinhas, gritos) eram virtualmente indistinguíveis das de um combate real. Porém era evidente, tanto para os macacos quanto para os espectadores humanos, que a briga era uma brincadeira. Por quê? Bateson percebeu que devia haver algum metassinal trocado pelos macacos que colocava a sequência inteira “entre parênteses”, requalificando-a como um jogo e não uma briga.

Também na comunicação humana há diversos sinais que servem para discriminar o contexto de uma mensagem, com a diferença de que no nosso caso os metassinais também podem ser verbais. Durante a terapia com esquizofrênicos e suas famílias, Bateson observou uma relação entre o tipo de criação que eles receberam e sua patologia. O hábito de certas mães e pais falsearem, negarem ou modificarem as metamensagens em suas comunicações com os filhos levava alguns deles (dependendo da genética e de experiências repetidas) a desenvolver uma síndrome de não identificação do tipo da mensagem. É o tipo de fenômeno que ele chamou de duplo vínculo (double bind).

Mas a síndrome transcontextual é apenas o lado negativo da moeda. O contato com fenômenos transcontextuais pode gerar tanto patologia como criatividade. Bateson classifica como transcontextuais uma série de fenômenos da comunicação humana: a esquizofrenia, a brincadeira, o jogo, o humor, a arte, a poesia e a ficção. Cada um destes é um modo comunicacional que o ser humano aprende a discriminar desde a infância, e caso esse aprendizado seja emocionalmente prejudicado, a pessoa pode se tornar esquizofrênica. Porém, caso aprenda a manipular contextos artisticamente, pode se tornar um comediante ou ficcionista.

Aventuras fantásticas

A psicanálise, o humor e a ficção permitem reavaliar e reorganizar valores pessoais num nível muito mais profundo. A teoria do efeito estético do alemão Wolfgang Iser trata bem desse assunto no âmbito da ficção linear. Eis a tese central de Iser: a literatura se dá como um jogo entre texto e leitor. O leitor real alimenta as perspectivas textuais com seu repertório de experiências pessoais, guiando-se por estas, ainda que inconscientemente, enquanto de certa forma “se perde” no papel de leitor prescrito pelo texto.

À medida que a leitura transcorre, imagens pré-verbais são formadas na imaginação do leitor. Essas imagens são reajustadas a cada avanço na leitura, fazendo deslizar o ponto de vista do leitor, ao mesmo tempo em que as perspectivas textuais estruturam um ponto de encontro final, que será o que chamamos de significado do texto. (Paradoxalmente, este significado não é expresso na “boa” ficção, que, para Iser, coincide com o potencial de ambiguidade do texto.) Ao menos na “boa” ficção, é assim que o leitor é tragado para o mundo do texto.

O que nos leva de volta aos livros-jogo ou RPGs solo. Já vimos que eles contêm metainstruções que pedem ao leitor-jogador que faça sua escolha. Todo livro-jogo, portanto, sublinha a função fática – chama a atenção do leitor para o canal e para o fato de o mecanismo só funcionar com a sua intervenção. O leitor não pode se abster de escolher, ou a história não anda! Essa é uma forma de responsabilizá-lo ostensivamente pelos rumos da narrativa e do personagem. Essa responsabilização é óbvia para muitos leitores aptos. Mas o contato com livros onde essa instrução é explícita pode ajudar o leitor iniciante ou intermediário a perceber melhor qual seria a graça do ato de leitura.

Eis a metametainformação do livro-jogo: o leitor pode reproduzir idêntico gesto participativo em muitas outras histórias, até aquelas sem metainstruções explícitas (o livro linear). Numa experiência posterior de leitura linear, este leitor estaria mais inclinado a fazer suas próprias metaintervenções sobre o tecido narrativo – contestando o narrador, sentindo responsabilidade e emoção pelas escolhas e desventuras dos personagens, e posteriormente revendo os próprios conceitos. Inclusive o de que ler não dá prazer ou não compensa.

Dizendo de outra forma: fazer o leitor trabalhar mais do que o normal pode despertá-lo para os prazeres de preencher as lacunas do texto com a mente. Ler livros-jogo é formatar a mente para virar uma máquina de leitura. Trabalho e diversão não são antônimos. Uma diversão é mais valorizada se for trabalhosa de alcançar – ela passa a atender pelo nome de gratificação. A questão é que uma gratificação que ensina o caminho até si mesma é quase uma serpente que morde o próprio rabo. É esse um dos segredos, talvez o principal, da atração do jogo. É por isso que o jogo pode absorver a tal ponto a atenção de jovens totalmente dispersos com outras atividades. E é por isso que muita gente teme que isso vá criar um público mimado, que não aceita atividades culturais que não o bajule de tempos em tempos com resultados claramente “proveitosos”.

Porém, isso não quer dizer que tenhamos que abjurar esse poder como se ele fosse o Um Anel dos livros de Tolkien. Assim como usar de clareza de estilo na ficção não significa incorrer na falta de apresentar soluções prontas ao leitor (conforme nos alerta Iser), o poder da concessão de gratificação pode ser usado para ensinar que a própria gratificação não precisa ser imediata – e que, na vida, raramente é.

Recentemente, fiz um experimento. Dei uma porção de livros infantis a uma menina de nove anos. Ela adora ler. Mas, acima de todos os Monteiros Lobatos, Roald Dahls e Harry Potters, ela prefere um livro-jogo da coleção Enrola e Desenrola. Não larga dele. Eu gostaria que houvesse por aí mais professoras como a do meu amigo Dimitri. E espero que com este texto seja possível chamar a atenção para o tanto de sério contido no lúdico.

* Simone Campos é escritora e tradutora, autora de OWNED – Um novo jogador (livro-jogo, 2011) e, dentre outros, A feia noite (romance, 2006) e Amostragem complexa (contos, 2009).

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