O leitor é um grande faisão no texto

Literatura

23.04.13

Um leitor está diante de dois livros de Herta Müller: O homem é um grande faisão no mundo, de 1986, e Fera d’alma, de 1994. Consciente de que o universo da autora é o universo abarcado pelo regime totalitário de Nicolae Ceau?escu, que durou de 1967 a 1989 e a levou à emigração para a Alemanha em 1987 (sua família pertencia à minoria alemã que, depois da Segunda Guerra, começou a sofrer severas represálias no país), o leitor tenta encontrar algo que lhe pudesse situar nesse cenário. Um cartaz de propaganda, por exemplo, que exalta o regime:

O leitor é um grande faisão no texto - por Kelvin Falcão Klein

Mas não é o suficiente, ou ainda não é o bastante, porque a escritura de Herta Müller é estranha, não parece fazer referência direta aos fatos, mas à sensação dos fatos. “O cadáver do ditador passava pela cabeça de todos como a própria vida desperdiçada”, escreve a narradora de Fera d’alma (Globo, 250 pág.; tradução de Claudia Abeling), “todos queriam sobreviver a ele”. E o que fazer para sobreviver? A resposta jamais é clara, e inúmeros subterfúgios são utilizados pelos personagens – é preciso resistir à privação, à fome, aos interrogatórios, à vigilância e, principalmente, à tensão invisível que percorre todas as relações, todos os corpos.

“Enxerguei a fera de sua alma”, ela continua. “Estava presa na lâmpada, pendurada. Estava encolhida e cansada. Fechei a geladeira porque a fera d’alma não era roubada. Podia apenas apenas ser a sua própria, ela era mais feia do que as vísceras de todos os animais deste mundo”. Há uma partícula resistente, portanto, algo que não pode ser nomeado diretamente, que só pode ser tateado, definido por aproximação – é essa “fera d’alma” que se pendura, que escapa. E ao pensar nessa resistência, o leitor se dá conta que há muito de combativo na ficção de Herta Müller, mas nada de vingativo (mesmo considerando o fato, relatado pela autora, de que amigos próximos a traíram como informantes do regime). Ou seja, uma contínua tentativa de dar conta da experiência da violência sem, no entanto, perpetuá-la – um distanciamento da história que se repete como farsa.

O leitor é um grande faisão no texto - por Kelvin Falcão Klein

Depois de ler e reler os textos, repassar as anotações e deixar o tempo decantar as impressões, o leitor arrisca um bilhete:

Preste atenção ao caráter corporal da prosa dela: as metáforas com frequência dizem respeito aos órgãos, aos fluidos, aos gestos – o vômito, o sangue, as lágrimas, tumores, “o vírus furtivo da morte”, o fígado que “está tão grande quanto o de um ganso obrigado a comer”. Mesmo nos títulos: “Fera d’alma” e “Tudo o que tenho levo comigo”; sempre que surge na narrativa a “fera da alma” transmite uma ideia de subjetividade que não se dobra, que resiste; no segundo título, “tudo o que tenho levo comigo” é a tradução de “Atemschaukel”, uma palavra criada pela autora e que corresponde ao movimento da respiração, ao ir e vir do ar no peito. É uma escritura somática. E que “faisão” é esse? Que metamorfose é essa? Há um enigma aí que persiste, mesmo que o faisão seja aquele que se deixa capturar, que se deixa domar, que se deixa.

O leitor é um grande faisão no texto - por Kelvin Falcão Klein

Se a “fera da alma” é aquilo que resiste, então existe alguma coisa que a força. E se tudo que forma a essência individual é aquilo que alguém leva consigo, então existe alguma coisa que provoca a fuga. A escrita poética e metafórica de Herta Müller parece sempre deixar algo por trás, como se ela primeiro escrevesse os fatos da história, da narrativa e da reconstrução e depois os camuflasse, os adornasse com suas imagens, com sua linguagem indireta, quase surrealista. O delírio se mescla ao relato.

E vem à mente do leitor aquela passagem de O homem é um grande faisão no mundo em que Windisch, o patriarca de uma família de origem alemã que tenta conseguir o visto para sair da Romênia, a cena em que Windisch, dentro de casa, se vê simultaneamente diante do guarda e diante do espelho: “o boné do policial gira na borda do espelho. Sobre o casaco do policial aparece o rosto de Windisch. O policial ri por entre as bochechas de Windisch, no rosto grande e sobranceiro de Windisch. Windisch ergue o punho. O casaco do policial se faz em pedaços. Windisch golpeia e mata ambas as caras pequenas e desanimadas que estão sobre as dragonas. Calada, a mulher de Windisch recolhe os restos do espelho”. A cena de Windisch diante do espelho reproduz o procedimento de Herta Müller: forma e conteúdo, técnica e representação se tocam, e o delírio do personagem se mesclando à realidade política é também o emblema de uma ficção heterogênea, indagativa e insolúvel.

O leitor é um grande faisão no texto - por Kelvin Falcão Klein

É como se a escritura de Müller convidasse a uma experiência, mais do que a uma interpretação. Sim, há a ditadura, a política, o sofrimento, mas há também uma mediação poética, uma subjetividade muito peculiar que procura transfigurar todos esses temas a partir da linguagem. Se fosse simplesmente pela busca da precisão na lida com os fatos, o leitor faria melhor ao procurar um manual de história, ao invés de um romance. Os livros de Herta Müller evidenciam não a precisão historiográfica, mas a interposição do humano em meio aos fatos e eventos. Uma escritura somática.

* Kelvin Falcão Klein é autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (2011).

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