O meme, o soneto e o escorbuto

Vida Contemporânea

19.07.17

1. A segunda metade da década de 1990 foi a época heroica da internet, tempo em que navegávamos como gregos mitológicos, em frágeis esquifes de plástico e vidro, rumo a um desconhecido horizonte em baixa resolução. Armados somente com disquetes e coragem, cruzávamos madrugadas no oceano informacional, embalados pelo canto dos modems dial-up, nossas sereias. Entre os monstros lendários que encontramos no caminho, havia um bebê dançando na escuridão.

O Dancing Baby é geralmente considerado o primeiro “fenômeno da internet”, antes da popularização dos termos “viral” e “meme”. A animação, um dos samples do programa Character Studio (lançado em 1996), circulou em diversas versões; na mais famosa, entretanto, o bebê dançava ao som de “Hooked on a Feeling”, canção da banda sueca Blue Swede.

Não cheguei a ver o bebê em seu auge. Meu primeiro contato com um meme na internet se deu no começo dos anos 2000, ao me deparar com a frase “All your base are belong to us” – sintaticamente desconfortável, descontextualizada, um mistério. Em fóruns de discussão e salas de bate-papo, repetiam-na como uma senha mística, frequentemente em sua forma acronímica, AYBABTU. Esse abracadabra dava acesso a uma espécie de irmandade: quem sabia sabia. Era um de nós. O desejo de pertencimento me levou a querer saber também.

Logo descobri que a frase tinha sido pinçada da cena de abertura de Zero Wing, um jogo do Mega Drive mal traduzido do original japonês. O diálogo inteiro era uma joia de comédia linguística involuntária, os gráficos lembravam infância, a trilha sonora grudava na memória. Entendi por que gostavam tanto. Mas esse conhecimento ainda não fazia de mim um membro da confraria. Levei mais um tempo e algumas troladas até descobrir que saber, simplesmente, não era a questão. O segredo estava na superfície: bastava repetir para pertencer.

2. O termo “meme” (corruptela do grego “μῖμος”, a mesma raiz de “mimese” ou “mímico”) foi criado pelo biólogo Richard Dawkins no livro O gene egoísta, publicado em 1976, para designar “uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação“. Isto é, um pedaço de informação capaz de se autopropagar “pulando de cérebro para cérebro” – em linhas gerais, o análogo cultural do gene. Melodias, ideias, práticas, desenhos, comportamentos ou slogans seriam, para Dawkins, exemplos de memes. Nas palavras do psicólogo N.K. Humphrey: “quando você planta um meme fértil em minha mente, você literalmente parasita meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exatamente como um vírus”.

O conceito ainda causa debates na comunidade científica, mas se aplica bem ao meme de internet: imagens, frases, GIFs, vídeos e atividades que se propagam por imitação e “viralizam”. Em sua manifestação mais conhecida, o meme toma a forma de imagens estáticas com texto sobreposto, as chamadas “image macros“. As figuras de fundo se repetem com frequência (Boromir, Bad Luck Brian, Grumpy Cat…), assim como algumas frases (“One does not simply…” etc.), e suas conotações são compreendidas pela maioria dos usuários.

Por exemplo: usa-se a foto do Bad Luck Brian com legendas descrevendo episódios de má sorte, vergonhosos ou trágicos, em um formato fixo de duas linhas, no qual a frase superior apresenta uma situação vivida por Brian (“Vê a luz no fim do túnel”) e a inferior, a reviravolta (“Trem”). O personagem é inteiramente ficcional: o nome do menino da foto é Kyle Craven, cujo retrato adolescente foi postado na internet por um amigo e, até onde se sabe, não é uma pessoa particularmente azarada. Porém, sua figura naquela foto se tornou um conduíte expressivo, a representação da má sorte em um código compartilhado. Um meme aplicável inclusive ao mais famoso bad-luck-brian da Antiguidade Clássica, Édipo:

A espantosa capacidade de propagação do meme (que atualmente pode nascer, atingir seu ápice reprodutivo e morrer em poucos dias) se deve não só ao desejo humano de pertencimento e comunicação, mas também à extrema adaptabilidade das formas. Praticamente todo internauta é capaz de se apropriar de uma image macro, entender as regras e publicar sua própria versão – existem inúmeros sites geradores de macros on-line. Com tempo livre e um smartphone, um grupo de pessoas é capaz de criar um novo Harlem Shake. Qualquer um compreende o #ThrowbackThursday (#TBT) ou o Forever Alone. O meme de internet é uma unidade cultural de consumo fácil e rápido, com um mecanismo de difusão impressionante. No entanto, o que o diferencia de uma canção-chiclete ou uma tendência de vestuário (que também são memes, na concepção de Dawkins) é a possibilidade de modificá-lo com ferramentas e habilidades primárias, além de servir mais diretamente como meio de expressão, afirmação de identidade e veículo de opiniões.

3. Em 2016, um meme simples, puramente textual, circulou no Twitter e logo migrou para o Facebook. Na primeira linha, entre aspas, uma pergunta iniciada por “Só eu que…” e, nas seguintes, uma lista de epítetos sarcásticos ridicularizando a citação. A forma ficou conhecida como diferentona. Uma versão popular, em transcrição literal do perfil @DiferentonaBR:

“Só eu prefiro livro do que filme?”
sim
só você
única
renascentista
vanguardista
estagiária de Machado de Assis
diferentona
barroca

O meme se espalhou rapidamente no caldo ácido da internet, uma reação à pretensão de individualidade e à vontade de se destacar da manada, como uma Lei de Jante tupiniquim: “Não pensarás que és especial”.

No entanto, há algo além da sátira e da crueldade adolescente na diferentona. Em todas as suas versões exitosas, a mesma estrutura rítmica se repetia. A interrogação de abertura, de tom naturalmente ascendente, era respondida com frases curtas, em baques repetidos, às vezes entremeadas com uma mais extensa, para potencializar o efeito cômico dos epítetos (no exemplo acima, “estagiária de Machado de Assis”). Tudo o que escapava a essa estrutura básica não era bem uma diferentona, ainda que a opinião satirizada fosse um achado. Não tinha a mesma “graça” e, portanto, era descartado na arena memética. O esqueleto rítmico definia a forma do mesmo modo que os dois quartetos e dois tercetos rimados definem um soneto italiano.

4. Segundo a definição de Richard Dawkins, o soneto é um meme, assim como qualquer outra forma poética ou as “maneiras de fazer potes ou construir arcos”. Isto, evidentemente, não quer dizer que o meme de internet seja poesia, mas muitos sonetos também não o são. O desenvolvimento da literatura – nos dois séculos passados, sobretudo – tornou possível um aparente contrassenso: um texto com as características superficiais de um poema é inegavelmente um poema, mas pode não ser poesia. Isto, claro, implica um juízo de valor. Não por acaso ainda hoje pespegamos o epíteto pejorativo “sonetista” a versejadores ruins.

O fato é que a compreensão do que seja poesia e do seu papel na sociedade se alterou, vitimando o pobre soneto no processo. A poesia já não é vista como uma função especializada, geralmente mais nobre ou séria, do sistema instrumental “linguagem”. A verdadeira arte da palavra não tem mais função, não serve para nada nem a ninguém, é gloriosamente inútil. Sua forma deve aspirar ao imemeficável.

Foi-se o tempo dos livros de ciência e filosofia em versos e dos poemas para declarar amor (ou para qualquer outra coisa). Lá está Drummond em seu “Procura da poesia”: “Não faças versos sobre acontecimentos”, “Não dramatizes, não invoques” etc. Sobretudo: “Não adules o poema”. Por isso, versinhos criados para serem compartilháveis no ambiente veloz e oportunista das redes sociais nos parecem cafonas. Pela mesma razão, os poemas de circunstância (comemorando nascimentos, encontros, aniversários etc.) são considerados peças menores nas obras de poetas como Bandeira ou o próprio Drummond. Tratam-se de resquícios de uma noção de poesia supostamente ultrapassada, segundo a qual o poema também poderia participar da comunicação cotidiana e rasteira.

A prática da poesia se afastou cada vez mais do comum, tanto do senso comum quanto da comunidade e seus códigos partilhados, deixando para trás as cascas ocas das formas fixas, que serviam igualmente ao bom poeta, ao panfletário de gazeta e ao colegial tísico. Hoje, alguns nostálgicos ainda tentam soprar suas dores e amores nas conchas vazias, mas quase ninguém ouve. O poema como veículo expressivo deu lugar à música, sua irmã bivitelina, e os colegiais trocaram o cálamo pelo violão – uma substituição sem dúvida impulsionada pela popularização do rádio e da TV.

Embora não haja escassez de colegiais com violão, nem de sonetistas, a Internet 2.0 inaugurou um regime expressivo que exige adaptação absoluta, sob pena de irrelevância. O meme, como Dawkins o descreveu, hoje está subordinado à lógica do meme de internet, cuja fertilidade não é um valor inerente. Sua propagação depende dos mecanismos das redes sociais, que não são os mesmos do jogo cultural que o biólogo tinha em mente. Nesta nova configuração, os memes dawkinianos precisam, antes, ascender à arena – via polêmica, popularidade do emissor ou cartão de crédito – para só então serem vistos. A validade é fruto da difusão, não o contrário.

5. O meme de internet tal qual o conhecemos jamais quis ser poesia, mas se tornou o meio de expressão privilegiado na comunicação on-line – e não raramente se infiltra nas conversas em carne e osso. Serve para dialogar, emitir opiniões políticas e até para vender frango. É a função especializada da linguagem contemporânea, posto antigamente ocupado por sonetos, trovas, rondós e cantigas. Fortemente associado ao universo da imaturidade, da comédia rala e do gregarismo fácil, não desfruta da mesma respeitabilidade. Porém, seus códigos são tão complexos quanto. Semântica e sintaticamente variado, com elementos visuais, textuais e sonoros imbricados, suas formas possíveis são muito mais numerosas.

O meme seria o sonho dourado dos poetas concretos, não fosse o verniz de frivolidade que o faz brilhar. Ainda que se esteja falando sobre solidão, terrorismo ou o impeachment da presidente da república, o meme produz um distanciamento irônico difícil de abolir. Nem sempre é cômico, mas nunca é sério; jamais se compromete, mesmo quando firma posição. Sua função primeira é se propagar a qualquer custo. A veiculação de uma mensagem pode ser o objetivo dominante, mas é invariavelmente efeito colateral. Por isso, a apropriação de um meme por políticos ou empresas é quase sempre recebida com suspeita ou escárnio.

A frivolidade é o que permite sua circulação na internet, que, após o advento das redes sociais, pelo menos, virou terreno impróprio ao cultivo da atenção. Aí reside a tragédia do meme: infinitamente fértil como forma, só pode prosperar num solo pobre. Por isso sofremos todos deste escorbuto cognitivo, que tem como um dos sintomas a “pós-verdade” – não a mentira, mas a irrelevância dos fatos diante da proliferação memética. Não há frutos nutritivos a comer enquanto navegamos. Os sonetos foram jogados ao mar faz tempo. Estavam podres.

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