O novo rap brasileiro (parte 2)

Música

04.05.12

Na segunda parte de nossa incursão pela poética do rap contemporâneo brasileiro, nos concentramos na influência que o já clássico Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, proporcionou ao hip hop paulistano, principalmente ao abrir para os novos poetas uma possibilidade de ir além da mera crônica dos fatos, transformando seus versos em ambientações estilizadas e sofisticadas. Propositalmente deixamos duas faixas dos próprios Racionais para o final da seleção, músicas tiradas de seu disco mais recente – Nada como um dia após outro dia -, lançado há dez anos. Mesmo a espera de um novo disco do grupo paulistano – que já tem várias músicas não lançadas circulando extra-oficialmente pela internet, principalmente em registros de show – não deixam a segunda parte de “Vida Loka” e “Negro Drama” perderem seu impacto e importância.

Sabotage – “Rap é compromisso”

Morto em 2003, aos 30 anos, o rapper Sabotage é um dos primeiros a assumir a importância da fama que o cenário pop entrega ao hip hop, e a manchete do jornal – para o “mano cavernoso” que “não era Pablo Escobar mas era o cara” – equivale ao holofote do estrelato. Sabotage apareceu no jornal por sua música e por sua morte. “O crime é igual ao rap”, canta um pouco antes de pedir para que todos abaixem as armas.

Na segunda parte, repare no jogo métrico dos últimos dois versos. No primeiro, a enumeração é lenta, para logo emendar na frase longa que é cantada rápido. As rimas são menos elaboradas, o que é compensado, na música, pelos jogos métricos.
http://www.youtube.com/watch?v=5GMKlg3hANo
“Mano cavernoso catador eficaz
Com 16 já foi manchete de jornal, rapaz
Respeitado lá no Brooklyn de ponta a ponta De várias broncas, mas de lucro, só leva fama
(…)
Passasse uma semana, e tudo começava
E no lugar que nasceu a fama só aumentava
Não era o Pablo Escobar
Mas era o cara e pá
Num caminhão, a profissão não exige calma
O crime é igual o rap
Rap é minha alma
Deite-se no chão
Abaixem suas armas
O dia-dia então reflete esperança
E quando saber de avoada aí, longe das crianças
Ele deslancha, tanto no campo ou na quadra
Morreu mais um na Sul, o boato rolava
Cabrero, ligeiro, trepado e esperto
Tamanduá que te abraçar que te lançar no inferno”

Letra completa aqui.

SNJ – “Viajando na Balada”

http://www.youtube.com/watch?v=gVgDtEvOH4Q

SNJ – sigla para Somos Nós a Justiça – foi um dos principais grupos que apareceram quando os Racionais se recolheram para gravar o sucessor de Sobrevivendo no Inferno. E uma das principais referências nesta nova fase é uma abordagem mais leve e menos tensa, como o humor quase escrachado de seu principal hit parece induzir. Nele, a antropofagia brasileira pega a fronteira sem lei do faroeste e transforma em favela nesse rap épico com sample de Ennio Morricone e inglês macarrônico (afinal, não é western spaghetti?). O resultado é um dos melhores clipes desta seleção (desconte a má qualidade da imagem e se concentre nas referências). Até o nome dos EUA sai da ordem:

“Viajei pela internet
Ponto com ponto br
State united of american
Pentágono xerife do morro”

O bourbon dá lugar à cachaça e  a lactobacilos vivos:

“Enquanto sobem com cachaça
Eu subo com yakult”

E o auge vem no refrão:

“Senti que aquele filme era só coisa de momento Bang bang bang ohohoh Só lá em hollywood Bang bang bang ohohoh Onde os cineastas ganham bem e não se iludem”

Letra completa aqui.

Z’África Brasil – “Sapo na Banca”

http://www.youtube.com/watch?v=5qJX7yfS6JQ

Como o SNJ, o Z’África também usa o bom humor como forma de atrair o público para outro tipo de conversa. Na música que os colocou no mapa, o protagonista é o sapo, personagem caro ao imaginário brasileiro. No folclore brasileiro, o sapo é apenas um sapo quando canta na beira do rio porque está com frio e é esperto quando entra de penetra na festa do céu. No modernismo dos versos de Bandeira (Urra o sapo-boi: / “Meu pai foi rei!”/ “Foi!” / “Não foi!” / “Foi!” / “Não foi!”), o coachar ganha ares de bate-boca.  Mas nos versos do Z’África, o sapo urbanizado é só um folgado – “na aba” -, querendo filar um trago num cigarro de maconha:

“Deixava a ponta, se acha o bamba e ainda paga de marginal.
Isso é idéia de safado, nóia de um real, eu sei, sapo é universal.
Pra dar uns dois no bob o cantor de lagoa se envolve Cuidado maluco, sapo também explode.
Rato de mocó, dedo de cimento armado, cobra criada.
Atrasa lado come quieto, na sapolândia ele é rei não sai da aba.
E na cara de pau cola na banca de responsa, pra dar uns dois na bomba.
Ele é do tipo do sapo que cola na banca só põe bagana e ainda comi a ponta”

Letra completa aqui.

Kamau – “A quem interessar possa”

Na cena, foi um dos principais MCs a surgir em São Paulo após a morte de Sabotage, pavimentando o caminho para a chegada de Emicida, o último grande nome a aparecer na década passada. Vive a saída do gueto e a desassociação de rap e crime. Nesta música ele exalta o menino que, na favela, não cedeu à malandragem e foi caxias, estudou, fez lição de casa, um tema recorrente à sua geração. O tom é quase épico (bem menos que o “Negro Drama” dos Racionais, veja abaixo), transforma o estudo, que “seu pai achava que não era mais que a obrigação”, em saga e a educação formal em desafio.

http://www.youtube.com/watch?v=EhfomAXxm9I

“Essa é pra você que escutava, prestava atenção
Em casa sempre estudava, sempre entregava a lição
Seu pai achava que não era mais que a obrigação
Mas sua mãe tinha orgulho de ter um filho tão esperto
Dia de prova todo mundo queria tá perto
Pedindo cola, vagabundo dizia “tá certo”
Foi assim do primário ao vestibular
Com bolsa de 100% em cursinho particular
Passou no curso que queria na primeira lista
Mas viu que era mais difícil do que parecia
Desbravou o território que desconhecia
Diploma na mão e o aprendiz virou especialista
No estágio já mostrava competência
Foi efetivado de cara, sem concorrência
Quem te zuava e chamava de CDF
Agora é seu camarada mas te chama de chefe”

Letra completa aqui.

Emicida – “Triunfo” e “Quer saber”

http://www.youtube.com/watch?v=l4FRTfp8N7o

http://www.youtube.com/watch?v=JMbnhms9cd4

Emicida transparece, nas suas letras, o movimento de saída do gueto pelo qual o rap passou. Por um lado, não se esquiva do posto de porta-voz da periferia – o bordão “a rua é noiz”, que popularizou, virou tema de disputa, já que, associado a Emicida, teve a autoria reinvindicada pela “rua” em si, público que dizia que o bordão era anterior ao rapper. Por outro, canta sobre casamento, vida familiar, filho, flerte, separação. Com rimas mais elaboradas e referências ainda mais abrangentes, nessa letra, seu primeiro hit de alcance nacional, ele chama para si a responsabilidade de líder para repetir o bordão que virou seu. E ainda recupera a ideia da força que teria a mobilização da periferia.

Além das rimas, Emicida cria relações nas estruturas internas da frase, o que faz seus versos mais interessantes. Em “Ser MC é conseguir ser H ponto aço”, por exemplo, ele associa a sigla MC – mestre de cerimônias – apenas com a letra H (e não com homem, humano, macho, pessoa). Outra marca do rapper que aparece nesta letra é o vocativo “tio”, usado com frequência e normalmente associado a outras marcações (xiu, viu) para criar micropausas.

“Milhares de olhares imploram socorro na esquina
No morro a fila anda a caminho da guilhotina
Várias queima de arquivo diária com a fome
E vão amontuando os corpo de quem não tem sobrenome
Eu vi, com os próprios olhos a sujeira do jogo
Minha conclusão é que muito buzo ainda vai pegar fogo
Aí, todo maloqueiro tem em si
Motivação pra ser Adolf Hitler ou Gandhi
E se a maioria de nóis partisse pro arrebento?
A porra do congresso tava em chama faz tempo!
Eu nasci junto a pobreza que enriquece o enredo
Eu cresci onde os muleque vira homem mais cedo
(…)
Tem mais de mil muleque aí querendo ser eu
Imitando o que eu faço, “tio, se eu errar fudeu!”
Ser MC é conseguir ser H ponto aço
No fim das contas fazer rima é a parte mais fácil
Já escrevi rap com as ratazana passeando em volta
Tio! goteira na telha, tremendo de frio
Quantos morreu assim e no fim quem viu!?
Meu, cês ainda quer memo ser mais rua que eu!?”

Letra completa aqui.

A provocação à namorada em “Quer Saber”, deixa a dúvida sobre o real interesse dela – se está com ele porque gosta dele ou porque ele está ficando famoso – e ilustra a saída do gueto. “Vila Zilda, não Madalena”; a aparição na mídia (“sem Rolling Stones, Folha, Bravo!”), o prêmio Video Music Awards da MTV servem para questionar a namorada e reafimar a origem do MC, que de novo se coloca na periferia (“meu coração mora nessa cena, sem cinema”).

“Sem hotel top, sem hip hop, sem hit
Imagine nós desviando das goteiras entre as madeirites?
6 da tarde cansado, com 30 sacolas de mercado cê quer ta pra sempre ao meu lado?
Incerta de ver vantagem
E se o melhor que eu poder te mostrar for o por do sol de cima da laje Vale a pena.
Não? que pena,
pequena,
meu coração mora nessa cena,
sem cinema
Só TV com Bombril na antena
Vila Zilda, não Madalena
Vive a vida sem ser Helena, Samba da Vela, sem Maresia no Sirena Talvez haja algum problema Sem Rolling Stones, Folha e Bravo!
Só a volta de buzo do rolê contando os centavos Porque é facil querer ir no VMB, gata..
Eu quero ver fazer na mão 10 mil capinha de CD.

Letra completa aqui.

Criolo – “Sucrilhos”

http://www.youtube.com/watch?v=igChrVMcqpw

“Papel alumínio todo amassado” é um exemplo da boa criação de imagens que Criolo, rapper da vez, faz. Na ponte entre o hip hop e a música brasileira tradicional (Chico e Caetano são fãs), ele compara favelado com Nutella para ironizar o interesse de cientistas sociais pela classe C, a nova classe C, a nova classe B, a classe D e o que mais for. Cita, na mesma estrofe, Caetano (“Cartola virá que eu vi, tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali”) e Sabotage.

“Cientista social, Casas Bahia e tragédia,
Gostam de favelado mais que Nutella
Quanto mais ópio você vai querer?
Uns preferem morrer ao ver o preto vencer
É papel alumínio todo amassado,
Esquenta não mãe é só uma cabeça de alho…
Cartola virá que eu vi,
Tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali
Cantar rap nunca foi pra homem fraco
Saber a hora de parar é pra homem sábio
Rico quer levar uma com nóis, ‘cê que sabe…
Quero ver pagar de loco lá em Abu Dhabi.
Eu sou nota 5 e sem provoca alarde,
Nota 10 é Dina Di DJ Primo e Sabotage”.

Letra completa aqui.

Racionais MCs – “Vida Loka pt 2” e “Negro Drama”

Pode ser que eles não saibam. Pode ser que saibam e se façam de desentendidos. Mas em quase todas as letras dos Racionais encontram-se referências, heranças e ligações com a poesia e sua história. Sabemos que pode parecer forçado, mas entre na nossa viagem. Em “Vida Loka pt 2”, o “fugir da cidade” do arcadismo aparece como o desejo de “todo preto como eu”, que procura, num terreno no mato, nadar no riacho, a tão distante “mediocridade áurea”, apenas um carpe diem. Em “Negro Drama”, a poesia épica sem tirar nem por ganha ares cinematográficos com a pontuação da história por palavras de ordem de gravação de filmes. Daria um filme e com um belo final: “Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal”. Não é à toa que ainda são o nome mais importante do hip hop brasileiro.

http://www.youtube.com/watch?v=b7OXqKbjhTA

“Que cê qué?
Viver pouco como um rei,
Ou muito, como um Zé?
Às vezes eu acho,
Que todo preto como eu,
Só quer um terreno no mato,
Só seu.
Sem luxo, descalço, nadar num riacho,
Sem fome,
Pegando as fruta no cacho.
Aí truta, é o que eu acho,
Quero também,
Mas em São Paulo,
Deus é uma nota de 100″

Letra completa aqui.

“Negro Drama”

http://www.youtube.com/watch?v=OCKj7_ocups

“Daria um filme,
Uma negra,
E uma criança nos braços,
Solitária na floresta,
De concreto e aço,
Veja,
Olha outra vez,
O rosto na multidão,
A multidão é um monstro,
Sem rosto e coração,
Hey,
São paulo,
Terra de arranha-céu,
A garoa rasga a carne,
É a torre de babel,
Famíla brasileira,
Dois contra o mundo,
Mãe solteira,
De um promissor,
Vagabundo,
Luz,
Câmera e ação,
Gravando a cena vai,
Um bastardo,
Mais um filho pardo,
Sem pai,
Ei,
Senhor de engenho,
Eu sei,
Bem quem você é,
Sozinho, cê num guenta,
Sozinho,
Cê num entra a pé,
Cê disse que era bom,
E a favela ouviu, lá
Também tem
Whiski, red bull,
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Fuzil,
Admito,
Seus carro é bonito,
É,
Eu não sei fazê,
Internet, video-cassete,
Os carro loco,
Atrasado,
Eu tô um pouco sim,
Tô,
Eu acho,
Só que tem que,
Seu jogo é sujo,
E eu não me encaixo,
Eu sô problema de montão,
De carnaval a carnaval,
Eu vim da selva,
Sou leão,
Sou demais pro seu quintal”

Letra completa aqui.

* Na imagem da home que ilustra desse post: o rapper Emicida.

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