O Oscar na contramão

No cinema

13.02.12

Não poderia haver dois filmes mais diferentes entre si. Mas, cada um à sua maneira, dois concorrentes ao Oscar trafegam ostensivamente na contramão de Hollywood. Falo do franco-americano O artista, indicado em dez categorias, e do iraniano A separação, que disputa o prêmio de filme estrangeiro.

Rodado em preto e branco e desprovido de diálogos, O artista, do francês Michel Hazanavicius, é uma estilizada declaração de amor e humor ao cinema americano. Seu entrecho deliberadamente esquemático revisita um momento crucial da história da indústria cinematográfica, a passagem do mudo ao sonoro. Nesse contexto turbulento, desenvolve-se o tema clássico do ocaso de um velho astro e da ascensão de uma nova estrela.

O astro, no caso, é o galã dos filmes mudos George Valentin (Jean Dujardin, que já trabalhara com o diretor em Agente 117). A estrela ascendente é a graciosa Peppy Miller (Bérénice Bejo).

Não é preciso ser cinéfilo ou historiador para lembrar, de cara, um punhado de filmes: Cantando na chuva, Crepúsculo dos deuses, Nasce uma estrela, Assim estava escrito. No cinema americano, como sabemos, tudo se recicla. Mas O artista acrescenta um grau de ironia, dá uma volta a mais no parafuso.

No momento em que o cinema atravessa novas revoluções tecnológicas (o digital, o 3-D), fazer um filme que mimetiza as produções de quase cem anos atrás, sem cor e sem diálogos, soa como uma saudável provocação.

Resistência aos novos tempos

Não é casual que a crise do protagonista venha da sua resistência aos novos tempos, da sua recusa em aceitar o cinema sonoro. Apesar do nome (Valentin), o personagem não remete tanto ao galã Rodolfo Valentino (morto antes do advento dos talkies), e sim a Chaplin, que resistiu o quanto pôde a falar nas telas, e sobretudo a Norma Desmond, a estrela decaída de Crepúsculo dos deuses que diz: “Tínhamos rostos, não precisávamos falar, falar, falar”.

O diretor de O artista visivelmente se deleita usando recursos do cinema mudo, como a gesticulação enfática dos atores, os letreiros de diálogos e o fechamento da imagem em “máscara” sobre um objeto significativo. Não faz isso como mero imitador, mas com ironia e astúcia criativa.

 

Alguns momentos são particularmente felizes, como o do pesadelo de Valentin, em que subitamente a cena é invadida pelos ruídos, ou a passagem em que ele é acossado imaginariamente por bocas que falam e riem sem parar. E há as homenagens indiretas, como a inserção do tema “Love scene”, de Bernard Hermann, da trilha sonora de Um corpo que cai. A música entra, em O artista, na sequência em que Peppy sai de carro em desespero à procura de Valentin – espelho invertido da busca de Kim Novak por James Stewart no filme de Hitchcock.

O cinema, parece nos dizer Hazanavicius, tem infinitos recursos expressivos, não precisa se render à fórmula rasa de ilusionismo tolo, dramaturgia naturalista e efeitos pirotécnicos que impera hoje em dia.

Humanismo iraniano

Sobrou pouco espaço para falar de A separação. Alguns críticos já destacaram os pontos em que o filme de Asghar Farhadi se distancia do cinema iraniano a que estamos habituados. Sua ambientação é urbana, seus protagonistas são de classe média, a câmera se movimenta bastante, a montagem é “ágil”.

Mas seria um engano, a partir dessa descrição, pensar que estamos diante de um espetáculo convencional, à americana. Pelo contrário, o que me parece mais interessante é a maneira como esse pequeno grande filme contradiz preceitos da narrativa cinematográfica hegemônica e se aproxima do olhar profundamente crítico e humanista de cineastas como Kiarostami, Makhmalbaf e Panahi.

O drama do casal Nader (Peyman Maadi) e Simin (Leila Hatami), que está à beira da separação porque ela quer emigrar para o exterior e ele quer ficar cuidando do pai com Alzheimer, já começa complicado e se complica cada vez  mais. A mulher contratada para cuidar do velho, grávida e com uma filha pequena, acusa o patrão de agressão. O patrão a acusa de deixar o doente sozinho em casa. Entram em cena outros personagens: parentes, vizinhos, credores, policiais.

Como na essência da tragédia, todos têm razão. Não há maniqueísmo, não há o conforto de poder torcer para uns contra outros. Por uma engenhosa construção dramática e manipulação do ponto de vista, a cada momento somos levados a nos colocar na pele de um personagem diferente e a viver suas dores e dilemas.

A câmera se posiciona muitas vezes como se estivesse documentando ou fazendo uma reportagem, o que faz com que o quadro frequentemente esteja obstruído no primeiro plano por objetos e vultos que impedem a visão do todo. Isso cria uma sensação de instabilidade e perigo constantes, sobretudo no que se refere aos personagens mais frágeis: o velho doente, a filha pequena da cuidadora.

Catarse negada

A todo momento, o filme frustra o anseio do espectador por uma catarse, por uma simplificação emotiva que o alivie da identificação com aquele que sofre. Cada pequeno gesto encerra um dilema moral. Fazer isto em vez daquilo pode definir o destino de uma porção de gente.

Se O artista simplifica brutalmente o entrecho e os personagens, já que seu interesse está em outra parte (o cinema e sua história), A separação expõe a vida como um terrível cipoal de relações e atritos, em que somos chamados a todo instante a assumir uma atitude ética. Estaremos à altura?

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