O Otto criado por Nelson Rodrigues

Por dentro do acervo

20.12.12

Fotografia de Carlos Moskovics, c.1949

Em 2012, os amigos Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende teriam motivos para dar uma festa memorável. O dramaturgo pernambucano completaria um século de vida e o escritor mineiro estaria com 90 anos. Os dois escritores-jornalistas ou jornalistas-escritores, que se conheceram na redação do jornal carioca O Globo, desenvolveram um forte laço de amizade. Nem mesmo os desentendimentos, gerados pela mania do dramaturgo de usar os nomes dos amigos como personagens de suas peças, suas crônicas e seus romances, não diminuíram o sentimento fraterno entre eles. Essa fixação de Nelson fez de Otto tanto protagonista quanto coadjuvante de diversas obras suas. Modo de homenagear que uma vez ou outra incomodava o jornalista mineiro.

Em 1961, Otto foi personagem de uma história dafamosa coluna “A vida como ela é”, do jornal Última Hora, em que Nelson escreveu por mais de uma década sobre fidelidade, ciúme, conflito entre amor e sexo, entre outros temas que lhe eram caros.

Coluna “A vida como ela é”, jornal Última Hora

Na crônica “A barca dos homens”, o dramaturgo contou a história de um sujeito que amava duas mulheres ao mesmo tempo e precisava se decidir por uma delas, por exigência do pai das moças. Necessitava com urgência do conselho de Otto e saiu perguntando a todos se o tinham visto.

Como não conseguira localizar o seu sábio amigo, o sujeito já imaginava que iria escolher a noiva pelo processo do par ou ímpar, quando finalmente encontrou Claudio Mello e Souza (outro grande jornalista que Nelson transformou em personagem). Souza lhe disse que acabara de passar pela casa de Otto e que o mineiro estava lá rasgando uma “papelada imensa”, fazendo “picadinho dos próprios originais”.

A razão dessa depressão de Otto teria sido a leitura de A barca dos homens, livro de Autran Dourado. De acordo com Souza, ele achou “o negócio tão bonito que resolveu renunciar à literatura”. Ainda bem que esse momento de fúria do escritor, relatado nessa crônica de Nelson, não passou de uma ficção e hoje todos os interessados pela vida e pela obra de Otto Lara Resende podem ter acesso ao seu arquivo com mais de 20 mil documentos, disponível para pesquisa no Instituto Moreira Salles.

A predileção do dramaturgo pelo nome do amigo apareceu não só nos personagens como também em títulos de suas obras. Na crônica “A viagem fantástica de Otto”, publicada no livro O reacionário, Nelson narra um encontro com o companheiro mineiro que regressara de uma viagem à Europa entediado com o padrão de corpos, costumes e paisagens dos países desenvolvidos.  O tom humorístico do texto fez de Otto um personagem caricato.

Em entrevista exibida pela TV Globo, em 1977, Otto cita o mesmo livro e pergunta a Nelson o porquê dessa obsessão com alguns companheiros. O autor afirma: “Sou amigo. Como amigo do Otto, quero tratá-lo sempre de uma maneira pessoal, com a ternura que ele merece. Mas amigos de Otto o perseguem e dizem que eu o levo ao ridículo”.

Apesar de saber da intenção de Nelson em homenageá-lo, o jornalista mineiro encarava essa atitude como gozação. E a maior das gozações seria uma peça com o seu nome: “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”, de 1962. História, aliás, que o desagradou muito. Na trama, os atores citam 47 vezes o seu nome e repetem uma frase que Otto negou ter dito: “O mineiro só é solidário no câncer”. Não por acaso, o dramaturgo inseriu na boca de seus personagens uma citação atribuída a Otto. O autor de “Vestido de Noiva” admirava muito o talento do seu amigo para criar frases de impacto e certa vez afirmou: “A grande obra de Otto Lara Resende é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender as suas anotações em uma loja de frases”.

Descontente com a brincadeira, o homenageado decidiu não assistir ao espetáculo. A sua indignação com a peça foi exposta na matéria “Entre ficar indiferente e matar Nelson Rodrigues preferi o 1º”, publicada no Diário de Minas, em 16 de dezembro de 1962. Ao jornal, o escritor contou que a leitura do texto lhe causou duas reações: indiferença e homicídio.

Com esse sentimento de vingança discreta, comentou: “Mas como o homicídio é punido pelo código penal, optei pela indiferença”. E complementou: “Apesar da minha repulsa em saber meu nome citado a quase todo o instante pelos personagens, o Nelson ainda se dá ao luxo de confidenciar que, na intimidade, eu estou muito lisonjeado”.

Com o tempo, esses aborrecimentos ficaram assim esquecidos e os dois continuaram amigos até o fim.

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