O palhaço, o país e a busca de identidade

No cinema

04.10.11

Dois filmes novos vistos na bela mostra Cine BH parecem não ter nada a ver um com o outro, mas dialogam entre si de modo enviesado e sutil. Estou falando de O palhaço, de Selton Mello, que abriu o evento mineiro na última quinta-feira, e de Meu país, de André Ristum, que entra em cartaz dia 7 de outubro.

O filme de Selton Mello, o segundo dirigido pelo ator, é, na superfície, um road movie encantador, acompanhando um circo mambembe em sua errância pelo interior de Minas Gerais. Selton é Benjamin, o palhaço Pangaré, filho e parceiro do dono do circo, o veterano palhaço Puro-Sangue (Paulo José).

Identidade e vocação

Como quase todo road movie, sua narrativa é episódica, com a própria estrada servindo como fio condutor. Mas há outros dois eixos narrativos, digamos, subterrâneos, que conferem à obra camadas inesperadas de significação, mostrando que de ingênuo o filme só tem a aparência.

Um dos problemas enfrentados por Benjamin é a falta de alvará de funcionamento para o circo, que ele só poderá obter quando tiver sua própria carteira de identidade. Enquanto viaja com o circo de vilarejo em vilarejo, ele vai adiando a regularização de sua situação pessoal e profissional, ao mesmo tempo em que se questiona sobre sua real vocação.

Tudo isso – essa sinuosa e hesitante busca pessoal – acontece como que em surdina, enquanto assumem o primeiro plano as aventuras e agruras da trupe itinerante.

Significativamente, o lugar em que o personagem acaba tirando sua carteira de identidade é a cidade mineira de Passos, local de nascimento do ator Selton Mello (devo esta informação ao colega João Nunes, crítico do Correio Popular, de Campinas), o que acrescenta ao filme mais um subtexto precioso, reforçado pela entrada em cena do irmão de Selton, o também ator Danton Mello.

A busca de identidade do personagem se mescla com a busca do ator por suas origens – e talvez também por sua afirmação profissional. Não deve ser por acaso que Selton, um dos melhores e mais versáteis atores da atualidade, escalou como seu pai, no filme, um dos melhores e mais versáteis atores da geração anterior, Paulo José.

O povo na TV

Há em O palhaço, mais do que um réquiem nostálgico à profissão de palhaço, um elogio ao ofício do ator como entertainer. Numa cena crucial, na carroceria de um caminhão, Benjamin faz rir uma linda boia-fria recorrendo a uma mímica que lembra a célebre cena de Donald O’Connor cantando Make them laugh em Singing in the rain. É uma discreta epifania, como se ele descobrisse ali, ao mesmo tempo, o amor e a vocação.

Agora vamos ao segundo “eixo subterrâneo”. Muito se elogiou, com justiça, a brilhante aparição de Moacyr Franco numa sequência hilária do filme, no papel de um delegado. O veterano cantor e ator chegou a ganhar o prêmio de coadjuvante no festival de Paulínia.

Mas esse achado de casting não foi um caso isolado. Outros astros da “era de ouro” do humor popular na televisão, como Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) e Ferrugem, foram escalados com precisão.

É como se Selton quisesse homenagear o circo moderno que marcou a sua infância e a de milhões de brasileiros. A impressão é reforçada pela utilização de clássicos bregas de Nelson Ned e Lindomar Castilho, a trilha sonora do período. Nesse sentido, o filme contrasta com seu congênere Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, em que a TV era anatemizada como exterminadora da cultura nacional-popular.

Em suma, O palhaço, com todos os seus problemas – como a contraposição algo moralista entre o polo da pureza (a menina Guilhermina/Larissa Manoela) e o polo da malícia (a vamp Lola/Giselle Motta) -, comprova que a expressão “entretenimento inteligente” não precisa ser uma contradição em termos. A seguir, o trailer.

País de quem?

Ufa, sobrou pouco espaço e pouco fôlego para falar sobre Meu país, filme também dotado de camadas e subtextos que remetem à questão da identidade e da definição de um lugar no mundo.

Um velho milionário (Paulo José, de novo) morre inesperadamente, deixando dois filhos: Marcos (Rodrigo Santoro), empresário bem-sucedido radicado na Itália e casado com uma italiana, e Tiago (Cauã Reymond), playboy viciado em jogo e em farra.

Com a morte do pai, Marcos vem com a mulher ao Brasil pensando em ficar poucos dias, mas acaba se enredando num cipoal de problemas: as dívidas de jogo do irmão, a bagunça dos negócios da família e, mais importante de tudo, a descoberta de que tem uma meia-irmã (Débora Falabella) deficiente mental.

Não cabe entrar aqui em detalhes do entrecho, mas por trás do melodrama familiar da superfície é possível arriscar uma leitura mais ou menos assim: Marcos encarna o anseio de certa elite, que dá as costas ao país e sua cultura e finge fazer parte do Primeiro Mundo. A crise do personagem ilumina a falência dessa perspectiva. Há todo um lastro (um fardo?) de instabilidade, loucura e bastardia, um passado torto e sujo, a embaraçar a ascensão ao paraíso.

Essa hipótese ou inferência tende a submergir no magma melodramático do filme, em sua aposta numa estética da nostalgia, construída pela recorrência dos mementos e lembranças, enfatizada na trilha sonora e na fotografia granulada e de cores esmaecidas. Mas posso estar enganado. De todo modo, o filme está chegando às telas. Cabe conferir. Abaixo, o trailer.

* Na imagem da home que ilustra este post: Paulo José e Selton Mello em cena de O palhaço

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