O pop morre em bis

Correspondência

04.12.12

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Querida Vilma,

por aqui está tudo com cara de reta final, deve ser por isso o tom deprimente da minha carta anterior, me desculpe se te morguei. Na real, mal se foi a última data consumista do ano, o dia das crianças, e já nos encontramos em pleno pré-Natal, todas as lojas gritam, como por aí no seu pedaço californiano, SALE. Nosso macaqueamento do yankee é tal que agora copiamos aqui a Black Friday, o dia seguinte do Dia de Ação de Graças, quando rolam aquelas liquidações típicas dos filme de Jerry Lewis (alguém ainda assiste aos filmes dele? Ele está vivo ainda? Pera, vou olhar. Sim, está). Por aqui a Black Friday (com esse nome mesmo) foi acochambrada por nosso jeitinho ? e várias lojas fingiram macunaimicamente que estavam com preços “*0% OFF”, só que na verdade tinham aumentado os preços no dia anterior, pra que os descontos causassem um impacto maior nos trouxas. A sensação de pré-Natal fica mais forte pra mim por conta do lançamento da VISHNU, a primeira graphic novel que roteirizei, que sai doze de dezembro. É a última coisa importante do ano, fora a final do Mundial de Clubes no Japão, de onde o meu Corinthians deve trazer a taça (mas isso não depende de mim), além, lógico, da segunda vinda anual do meu filho ao Brasil (Lorenzo mora com a mãe na Itália). Quando juntá-lo à sua irmã Valentina (filha de outra mãe), teremos a nossa família de três reunida e remixada, e minha melancolia se despedirá de vez de mim.

Um prato possível para a ceia natalina desse insólito clã seria não um esquilinho, como você sugere, mas um animalzinho semelhante, o cuy, como o porquinho da índia é conhecido no Peru. Conhece? É uma finíssima iguaria, que conheci durante uma viagem a Macchu Picchu há uns anos. Não estou viajando na maionese relacionando o porquinho da índia ao Natal. Na catedral de Cuzco há um quadro retratando uma Última Ceia à peruana: ao centro dos treze suspeitos, um mirrado porquinho da índia (talvez fosse necessário ao Cristo inca o dom da multiplicação dos alimentos). Uma coisa curiosa desse quadro é que o pintor cusquenho Marco Zapata teria se vingado retratando Judas com a cor escura, típica dos incas ? porém com feições do Pizarro, o espanhol que traiu Atahualpa e conquistou o império inca. Qual o gosto? Bem, Manuel Bandeira que me desculpe, mas o sabor da sua primeira namorada é borrachento, uma brancura espessa, nem peixe nem frango, mas, com pimenta e limão, fica uma delícia.

Mas você vê, Vilma, aqui me tens digresso de regresso, não consigo começar um assunto sem já pular para o outro. Sem mimimi, todavia: essa mente zapeante é meu ganha-pão. Por falar em ganhar, aquelas caixas com livros repetidos e desnecessários até que renderam um dinheirinho pra fazer um supermercado. Como te disse, retirei cuidadosamente as dedicatórias pra não acontecer o que te aconteceu. Que história tristíssima, hein? Comigo foi uma jornalista desatenta, mas contigo a ingrata dedicada foi uma amiga… Imagino se pego um livro dedicado a um amor de antanho; fico até fanho só de pensar. Por falar em dedicatórias, você leu uma matéria linda da Mariana Filgueiras n’O Globo? Uma história sensacional. O dono da Baratos da Ribeiro, meu sebo carioca favorito, guardou durante anos uma velhíssima edição italiana do Nove Histórias do Salinger só porque ele continha a dedicatória mais emocionante que ele já havia lido, que começava com “De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir”. Até que descobriu o dono do livro, que havia se casado com a tal italiana, “amor de sua vida”, com quem teve duas filhas. A cena do reencontro do velhinho com seu Salinger-cupido é de chorar, quando puder dá uma olhada.

Por falar em Natal, Vilma, você vai ter de repensar o meu presente. Na arrumação das estantes, descobri que tenho não só o Caro Michele, da Nathalia Ginzburg, como quatro outros livros dela ? todos vergonhosamente não lidos. Mesmo depois do desbastamento, minha biblioteca segue sendo um retrato da vastidão da minha ignorância. Comecei a ler a Nathalia e estou gostando. Mas ela ainda tem a concorrência de outros livros na cabeceira: o Oblómov, do Gontcharóv, Um Chinês de Bicicleta, do Ariel Magnus, a biografia do Mick Jagger, a reedição do Laranja Mecânica, que acabou de chegar… Ah, chegou também um livro que apeteceria aos seus alunos: a tradução para o inglês de A Obscena Madame D, da minha ídola Hilda. O texto inglês vem elogiado pelo Benjamin Moser, foi fixado pela escritora americana Nathanaël junto com a editora mineira Rachel Gontijo Araújo, d’A Bolha ? um casa editorial muito interessante, só traduz literatura underground norte-americana para o Brasil. Será que, agora que começa a ser traduzida ao inglês, HH vai ser afinal reconhecida como se deve, como uma das maiores autoras do século 20? Sei que você gosta mais da Clarice, mas a Hilda… não sei, tem coisas que só a Hilda. Eu gosto da aversão ao realismo em Hilda. Quando eu digo realismo é em relação a esse texto contaminado pelo reality jornalístico, onipresente nas livrarias. Esses dias o Werner Herzog deu uma entrevista em que tocou nesse ponto que me incomoda. Dizia ele:

Acho que o cinema se orienta muito pelos fatos. É um erro comum. Fatos não constituem exatamente a verdade. Fatos só servem se você precisar fazer contabilidade de uma empresa. A verdade, por outro lado, deve ser algo que nos ilumina. Que nos põe em um estado de êxtase iluminado. Você não tem a menor ideia do que se passa na cabeça de Stephen Hawking, por exemplo. Ele chora à noite? Não sabemos. Temos que pisar em um mundo além dos fatos.

É isso, Vilma: aquela sua história sobre a menina e o esquilo no bosque falam mais da realidade do que se fosse um texto realista-chão, porque nos coloca nesse estado de êxtase iluminado, e daí nos devolve de novo a realidade roubada pela aridez e estupidez dos fatos. Eu ainda acredito ser possível atingir esse estado através da arte, da literatura, ou até mesmo da degustação de um porquinho-da-índia ? talvez seja a única coisa em que acredite. Dia desses fui ver o show de uma banda que nunca tinha escutado, o Pulp, em uma casa de shows famosa em São Paulo cujos dias estão contados, a Via Funchal. Foi como estar do lado de fora de um aquário. E fiquei pensando em como observar o êxtase do lado de fora, e com a perspectiva da finitude das coisas, nos traz não apenas e toscamente um sabor de melancolia, porém também de impostura, de irrealidade, e de uma lucidez que, ela sim, me parece mais reveladora do que a mera entrega do transe trazido pela música. Aí escrevi o poema que encerra essa nossa correspondência.

E chega de falar no fim!

Ah é, pois é, nossa peça vai ficar mesmo pra 2013…

Beijos,

Ronaldo

P.S.: Café com alfajores semana que vem?

O último concerto pop

Esse lugar vai acabar
por causa do progresso inexorável da cidade
o progresso vai acabar com a experiência de assistir a um show
o progresso vai acabar com a experiência
o progresso é o work in progress sem o in
na plateia ninguém acende cigarros baseados beijos
acendem-se flashes iphones ipads
a experiência precisa ser interagida registrada publicada
ou não existe
esse mundo está morrendo
shows serão videogames
o artista era um xamã
agora é nosso avatar
a solidão do servente surdo no banheiro da casa de shows que vai acabar
a solidão do cara que assiste sozinho ao show com vergonha de dançar
a solidão do xamã no palco
a solidão impostada para a solidão da menina que assiste
e que canta com o xamã que quer ser uma pessoa comum
mas o xamã não quer ser um ídolo pop nem uma pessoa comum
o xamã é um homem morto
e só quer ser William Blake
aquele que se cola à felicidade destrói a vida alada
mas se beijar a alegria enquanto voa
vive na eternidade de um nascer do sol
o show transporta a menina para fora
e também para o ontem da própria massa comum de que participa
a solidão de quem assiste a um show de uma banda que nunca ouviu
a solidão de quem sente saudade do que jamais conheceu
a solidão de quem não entende a massa comum ao redor
a solidão de quem não ouviu a música
trancado no quarto abraçado ao travesseiro
a última banda pop toca sua última música
a última súplica do xamã à gritaria às palmas à dança ao caraoquê que nos une
a última apresentação dos integrantes da banda pop
o último falso final
quando a banda volta ao bis é o fim da morte
vocês não precisam acordar cedo pergunta o xamã
esta casa será demolida para virar um estacionamento
os automóveis já estão prontos para os shows de amanhã
o pop morre em bis
o pop morre em loop
compartilhe isso plis

* Na imagem que ilustra a home do post: o cantor Jarvis Cocker, do Pulp

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