O que devemos aos gregos

Cinema

08.11.11

À primeira vista, um filme distante do espectador de hoje: Electra, de Michael Cacoyannis, inspirado no texto de Eurípides, foi feito em 1962, em preto e branco, num momento em que o cinema era pensado e realizado como uma construção de imagens – o som era acrescentado depois, em estúdios de dublagem e de produção de ruídos para correr por baixo dos diálogos, e estúdios de gravação de música para, nos silêncios ou por cima das falas, acentuar o ritmo ou a intensidade da cena. Tudo muito diferente do que a câmera mais leve e silenciosa associada a um gravador portátil, equipamentos que começavam a ser fabricados naquele momento, tornaram possível adiante: a filmagem em som direto. E mais diferente ainda do que as câmeras e materiais digitais tornam possível hoje: pensar e fazer cinema como uma construção sonora – a imagem (quase podemos dizer assim, em que pese a simultaneidade do registro) é acrescentada depois.

Distante, sim, mas ao mesmo tempo nada mais perto do espectador grego de hoje. Ao final do filme, era como se Eurípides filmado por Cacoyannis estivesse falando da Grécia de agora, da crise trágica de agora que estava bem ali à espera de todos na saída da projeção no Festival de Thessaloniki. A história é outra, mas o sentimento trágico é o mesmo.

Electra foi exibido comercialmente entre nós no ano seguinte a sua produção. Dois filmes anteriores de Cacoyannis tiveram distribuição nos cinemas brasileiros, Stella (1955) e A mulher de negro (1956). Dois outros filmes do diretor foram igualmente exibidos em nossas salas comerciais, Zorba, o grego (1964) e O dia em que os peixes saíram d’água (1967). Depois, se não me falha a memória (que por natureza falha com frequência), nenhum outro filme de Cacoyannis teve distribuição comercial no Brasil. Ele faleceu em julho último, aos 90 anos de idade, e a exibição foi promovida como uma homenagem à memória do diretor.

Primeira das três tragédias filmadas por Cacoyannis – as outras duas foram As troianas (1971) e Ifigênia (1977) -, Electra propõe uma imagem fiel a sua origem teatral. Trabalha o quadro e a movimentação dos intérpretes dentro dele num estilo próximo àquele adotado por Eisenstein na metade da década de 1940 em Ivan, o terrível. As filmagens foram feitas em cenários naturais, mas não registram a paisagem e as pessoas diante da objetiva, de acordo com a prática neorrealista então dominante; ao contrário, transforma, deforma. Pessoas e paisagens se movem para a câmera, que cria um espaço em que dominam os tons escuros – os vestidos negros das mulheres, os véus escuros que cobrem parte da cabeça. Nesse espaço, o intérprete é convidado a se mover como quem dança e a recitar seus diálogos como quem canta. Como quem dança e canta numa espécie de teatro de sombras que, graças à fotografia de Walter Lassaly, destaca o tom claro do rosto dos interpretes, em especial o de Irene Papas no papel de Electra. Um teatro de sombras em que a música de Mikis Theodorakis revela o ritmo trágico do gesto antes mesmo que a tragédia se anuncie pela fala. O espectador sem sair de seu lugar é deslocado para outra dimensão, para uma realidade, digamos assim, irreal. E talvez exatamente por isso, a tragédia de Electra pode ser sentida como uma conversa sobre aqui e agora.

No final, depois de matar a mãe para vingar o assassinato do pai, a porta da casa apedrejada por toda a gente, Electra e Orestes se encontram diante de uma tragédia ainda maior do que a tinham vivido até então: o sofrimento com o crime, matar a mãe, cometido em nome do sofrimento com outro crime, ela matara o pai. Um sofrimento como um nó na garganta se estende até depois das mulheres de negro na porta de casa recitarem a frase de Eurípides que encerra a tragédia e que diz mais ou menos: jamais existiu uma casa tão nobre e ao mesmo tempo tão amaldiçoada. O comentário sussurrado por um espectador na saída – “somos nós, agora” – lembrou-me a observação de Godard, maio do ano passado, ao explicar que por “problemas gregos” não podia ir a Cannes para apresentar Film Socialisme: “uma ironia que se fale tanto de dívida da Grécia. Afinal, nós, europeus, devemos tudo aos gregos”.

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