O risco de sacralizar o museu dessacralizado

Arquitetura

11.12.15

Não foi Lina, mas sim Pietro que pensou o Masp como um “antimuseu” ou “contramuseu”. Ainda em 1951, no artigo Musées hors des limites (publicado na revista Habitat, número 4), Pietro Maria Bardi se posicionava contrariamente ao “empoeirado” e “velho museu do século XVIII”, hegemônico na Europa que largara cinco anos antes. Ao reivindicar “o momento de reformar os museus”, atentando para a “função educativa” e a capacidade de conter “múltiplas atividades” a fim de construir “de uma maneira viva a unidade fundamental das artes”, o intelectual italiano estabelecia a pauta do seu projeto institucional para o Masp, já em curso na primeira sede, na rua Sete de Abril, ocupando um andar do prédio dos Diários Associados no centro de São Paulo. Quando conclamava “não uma arquitetura-prisão mas uma arquitetura livre, com os interiores móveis”, doutor Bardi fundamentava o projeto arquitetônico definitivo do museu, que anos depois ficou a cargo de sua mulher, a arquiteta Lina Bo Bardi.

Vista da pinacoteca do MASP com os cavaletes de Lina Bo Bardi. Foto de Eduardo Ortega/Divulgação

Na mesma medida em que se confirmou símbolo da cidade, o Masp, inconfundível bloco suspenso na avenida Paulista por dois pórticos vermelhos que dão formato ao vão livre, submergiu em uma condição contraditória nas ultimas décadas. Sua forma e localização costuram-se numa rara capacidade de atração e convergência de pessoas, porém o interior do museu foi praticamente esquecido por grande parte da população, dos mais intelectualizados ao povo que tanto mobilizou o interesse do casal Bardi.

Aparentemente, o jogo começou a virar. E este dezembro nos oferece um marco desta reversão: o retorno dos painéis-cavaletes de vidro para a pinacoteca do Masp. Desde 1996, a radical proposta de Lina Bo tinha deixado o segundo andar do museu para habitar apaixonadamente o imaginário dos arquitetos. A traumática retirada foi vista como um acinte ao esforço de atribuir o devido valor à obra de Lina. Em um período que a arquitetura brasileira conferia ao moderno o estatuto de tradição nacional, levar os cavaletes para o depósito era um descompromisso do nocivo sujeito que tinha tomado as rédeas da instituição com suas práticas mercadológicas. Enquanto a manutenção e propagação da memória da arquiteta obteve considerável êxito, o Masp chafurdava em sua crise. Para recolocar o museu nos trilhos supostamente estabelecidos por seus demiurgos, a panaceia solucionadora dos males era o retorno dos ditos painéis-cavaletes de vidro. Será mesmo suficiente?

Fato é que esses suportes consistiam em uma base cúbica de concreto e madeira com uma placa de vidro de 2,40 metros de altura e quatro larguras diferentes selecionadas de acordo com a obra de arte que sustenta, ocupando o meio do grande salão sem estruturas e obstáculos. Por um lado, era evidente que o perímetro delimitado por fachadas também de vidro dificultava ou mesmo impedia que os quadros fossem pendurados nas paredes, tal como na maioria esmagadora de museus no mundo. O mais interessante é, no entanto, perceber que a transparência permitia a mescla visual entre a conturbada miríade de torres heterogêneas da cidade com uma seleção de objetos representativos daquilo que a humanidade produziu de melhor. Com uma estratégia museológica alinhada a de Mies van der Rohe, o casal Bardi queria pôr a alta cultura a serviço do popular. Friccionava a aura da obra de arte fazendo-a coabitar o espaço com as pessoas, com o comum.

Os quadros assim adquiriam uma vitalidade distinta da que existiu no ateliê do artista em seu ato criador. As unidades se esgarçavam em prol de um conjunto sem hierarquia, sem classificações, sem cronologia. “O tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim”, diz Lina. Na diferença de pinturas, estilos, origens, temáticas e épocas, estimulava-se o observador para a formulação de um entendimento pessoal, uma postura ativa. Concedia-se ao visitante a construção da sua própria narrativa, do trajeto a ser feito naquela pinacoteca. Por sua vez, o espaço ativava-se pela presença de pessoas. Os percursos por entre painéis-cavaletes ganhavam ares de dança, numa coreografia livre de determinações ou repetições.

Esta experiência é restituída no retorno dos diáfanos totens pelas mãos dos arquitetos do Metro, escritório responsável pela execução do projeto, que esmeram a solução técnica de Bo Bardi, engenhosa porém carregada de uma certa rudeza. Eles são parte fundamental do processo de reapropriação do museu, capitaneado pelo curador Adriano Pedrosa, há um ano no cargo. Coube a ele optar por posicionar o acervo de acordo com um sequenciamento cronológico no grande salão, o que poderia fundamentar um argumento acerca de uma fragilização da intenção original de confrontar diferenças. Mas, na prática, nada garante que os visitantes percorram de modo ordenado e dirijam-se mais para o lado que para a frente. Esse é um dos aspectos que fotografias e descrições não transmitem e que só se percebem na visita. Dentre tantos outros, destaco mais dois.

As pinturas flutuam. A transparência é literal a ponto de mal conseguirmos distinguir os tênues contornos das lâminas de vidro a uma distância de três ou quatro fileiras de painéis. Justifique-se isso pela silhueta delgada, porque nossos olhos são obviamente atraídos por aquilo que há de opaco (as obras de arte), pela mistura de tantas camadas vítreas e a consequente indistinção. Em determinado momento, as bases de concreto e madeira operam como índices pontuando as pinturas no chão, sem que se perceba a matéria que faz essa intermediação. O que vemos é uma profusão de trabalhos na altura dos nossos olhos. A cada quadro que se passa, outros se acrescentam ao nosso campo de visão.

Se, quando estamos de frente aos painéis-cavaletes, temos a transparência literal moderna, quando nossos olhos estão direcionados ao verso desses suportes não vemos mais as obras de arte, mas seus reflexos. O suporte expositivo passa a operar como vidro e espelho, simultaneamente. Na sobreposição de camadas reflexivas, prosseguimos tendo a vista do cavalete da frente somado aos cavaletes por trás: afinal, a transparência não deixa de atuar, porém agora esta transparência não mais nos esclarece, e sim nos confunde. Não se vê o quadro em si, mas sua imagem refletida nas costas da tela, justaposta a outras pinturas ali reproduzidas, amalgamando assim obras de arte conforme o observador se desloca. Aliás, aquele que visualiza é também incorporado na imagem, tal como todas as pessoas que estão na pinacoteca. As distintas profundidades espelhadas passam a ser de difícil discernimento. É tudo ilusório, na verdade. As imagens achatam-se na superfície de vidro, mas não vemos assim. As referências espaciais enturvam-se. A dança por entre cavaletes ganha ares de fantasmagoria. Os sujeitos reproduzidos no cristal passam a ter algo de espectral. Não há nitidez. Se não olhamos para trás, o rito de saída promove encantamento e mistério. Evoca o mundo contemporâneo antes mesmo de sairmos do espaço moderno.

Ali percebemos que há um descompasso de épocas. Este desencontro não está no retorno dos painéis-cavaletes de vidro em si, mas na leitura deles que parte considerável do público intelectual-acadêmico propaga na imprensa ou na universidade. No festejo generalizado, há um subtexto maniqueísta: a vitória da heroína em relação ao anti-herói. Ela, Lina, moderna, veio das ruínas do pós-guerra na Itália para entender nossa cultura brasileira “melhor que nós mesmos”, nos presenteando com o Masp, o Sesc Pompeia, o Solar do Unhão etc. Ele, Julio Neves, pintado como crápula, fazedor de neoclássicos, o mal administrador do Masp que legou dívidas, deixou um Picasso e um Portinari serem roubados, não pagou a conta de luz e o pior de tudo: furtou-nos por duas décadas a oportunidade de admirar a pinacoteca do museu com os cavaletes de vidro. Afora arquitetura, o Brasil tem uma tendência a acreditar em uma rígida polarização entre a heroína e o anti-herói.

Quando esteve no Brasil em 2011, até Rem Koolhaas percebeu como os arquitetos contemporâneos cultivam como heróis seus predecessores modernos. “Quero contribuir para que o Brasil discuta seus heróis. É essencial ser crítico quanto aos arquitetos. Quero contribuir com uma nova liberdade”, declarou ele ao Estado de S. Paulo. Há atitudes de herói e anti-herói em cada figura dessa geleia de comportamentos e relações dos que hoje reestruturam o Masp, dos ditos herdeiros de Lina Bo Bardi, dos patrimonialistas e dos “guardiões” da boa arquitetura moderna brasileira. O anti-herói, definitivamente, não é o outro.

E nem heroína Lina é. Muito menos intocável. Aliás, seus textos e declarações nos fazem acreditar que ela não se sentiria nada à vontade neste papel que lhe foi atribuído principalmente depois de sua morte. A idolatria a Lina Bo Bardi ganhou tamanha magnitude que recorrentemente se oblitera a figura de Pietro Maria Bardi, idealizador do Masp como “antimuseu” e presente no dia a dia da instituição por mais de quatro décadas. Os painéis-cavaletes de vidro não existiriam se o Masp não carregasse em sua postulação inicial a explícita intenção de ser um “contramuseu”.

Aí pode-se entender melhor a inversão histórica que se dá. Concebidos para gerar atrito, incomodar o observador (turista) passivo, questionar a historiografia europeia imposta, friccionar o status quo, os painéis-cavaletes do “anti-museu” tornam-se a solução pacificadora para a situação do Masp. A falsa vitória da heroína contra o anti-herói é a sacralização do museu dessacralizado.

A força e o radicalismo da proposta expográfica correm risco de perder a potência. Afinal, 2015 não é 1968, quando Doutor Bardi inaugurava a pinacoteca do Masp apresentando-a à então jovem Rainha Elizabeth. Para a nossa geração que naturalmente recebe incontáveis estímulos de aparelhos digitais 24 horas por dia, a convergência em um mesmo ângulo de visão de um Mantegna, um Velasquez, um Manet e um Matisse pode ser apreciada com a mesma fácil irresponsabilidade de arrastar o dedo para mudar de foto no Instagram. Estamos a um passo de incorrer no anacronismo.

Para evitá-lo, é necessário que a instituição sediada no meio da avenida Paulista se questione: o que o Masp quer ser? O retorno dos painéis-cavaletes pode ser entendido como um interessante início desta resposta, uma estratégia respeitável. Contudo, é insuficiente para que o Masp readquira o protagonismo no meio cultural. Para isso, será necessário parar de pagar pedágio à figura da Lina, antes que transformem a heroína em fantasma. Seria temerária a ampliação do tombamento em órgãos de patrimônio. Os painéis-cavaletes não podem ocupar permanentemente o último pavimento do museu. Sua pinacoteca deve ser um território de testes, de mudanças, de experimentações.

O Masp precisa compreender melhor o que acontece no vão livre e dialogar com aqueles que o ocupam, ouvir as vozes dos que ali protestam, beneficiar-se deste “palco” das virtudes e dos problemas paulistanos – é um campo de possibilidades não explorado pela arte contemporânea. Que conceda o espaço como um laboratório para que os artistas relacionem-se direto com o Masp (edifício e instituição), tal como um personagem, vivo, que irradia questões para o debate público. Ou seja, indispensáveis não são o retorno dos painéis-cavaletes e a mitificação da autora, mas sim o resgate do espírito de “antimuseu”. Em prol da reflexão que tudo absorve e confunde e do verso dos cavaletes de vidro, a direção da saída interessa mais que a de entrada.

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