O silêncio do tam tam de Naná

Música

10.03.16

Ele dizia que podia tocar a alma das suas crianças com a percussão. Saía cedíssimo para dar aula aos meninos autistas num subúrbio francês bem longe. Em geral, já tinha passado a noite inteira na cave do seu sala e quarto no Halles, sozinho, tocando suas tumbadoras num som ensurdecedor, protegido pelas paredes de pedra das reclamações dos vizinhos. Voltava a mil, passava na casa dos amigos, acordava todo mundo fazendo percussão na porta de entrada, tomava um café e, quando todos já tinham entrado no ritmo dele, despedia-se e ia dormir. Era meio dos anos 70, em Paris.

Naná Vasconcelos em Paris, Les Halles, 1976. Fotografia © Alécio de Andrade, ADAGP, Paris, 2016 / Coleção Instituto Moreira Salles

Naná Vasconcelos tinha chegado há pouco, mas já era uma estrela entre os comerciantes da Rue Montorgueil, no Halles. O René, do bar em frente ao metrô, tinha instrumentos sempre à mão para distribuir aos amigos quando ele começava a batucar na mesa. Ao gravar o primeiro disco – Africadeus, 1971- saiu trocando a bolacha de vinil por queijo, vinho e uns beefteaks. Quando exagerava nos bares da vida, a mulher americana passava e o levava pela orelha para casa. No dia seguinte, era a piada da rua e o primeiro a gargalhar.

Naná tinha chegado na Europa depois de passar por Rio e Nova York. O jeito de ele contar a sua trajetória era uma delícia, não durava dez minutos e não podia ser mais simples. Quando era criança, tipo sete anos, tocava triângulo com o pai sanfoneiro no puteiro da cidade. Lá pelos onze, ficou deslumbrado com a banda municipal e seu sonho era ser taroleiro – o tocador de tarol – do conjunto. Fez concurso e passou dias ouvindo a Voz do Brasil na esperança de seu nome ser anunciado como o novo músico da prefeitura. Ficou por lá um tempo e veio pro Rio, na fase da pré-bossa-nova. “Fiquei arrasado, só tinha fera tocando, não ia dar pra mim”, contava, impressionado especialmente com Do Um. Gravou dois discos com Milton Nascimento, apresentou-se no Festival da Canção e foi rapidinho para Nova York.

“Tinha uma doçura nos olhos e na alma. Sempre gentil. Um riso discreto, o sotaque pernambucano. A espiritualidade, as velas acesas”, lembra Sergio Flaksman, que entrou com ele no palco para acompanhar a Joyce, junto com Nelson Angelo e Mauricio Maestro.

Ao chegar a Manhattan, fez turnê com Gato Barbieri – genial saxofonista argentino – apresentou-se em festivais nos EUA e Europa mas não falava muito nisso não. Contava era a recepção recebida de um produtor musical, daqueles típicos, bem mal humorados e arrogantes. Naná levara para ele fitas com o melhor da sua produção, o cara ouviu aquilo, foi numa estante e entregou-lhe outras dez fitas . “Eram dos músicos caribenhos, tocavam muito”, contava rindo.

Não importa se tudo foi exatamente como ele contava, mas era sempre engraçado, acompanhado de alguns passos de dança e muitos gestos. Mudou-se para Europa, acompanhando a mulher americana. Fazia um sucesso arrasador onde se apresentava, mas os shows eram poucos e os tempos ainda difíceis: os amigos exilados políticos ajudavam a carregar os instrumentos, emprestavam o carro para levar aquela infinidade de pequenos objetos de onde ele tirava sons incríveis.

“Met lá que je joue”, explicava meio em francês, meio pernambuquês. “Bota lá que eu toco”, era  o seu jeito de dizer sim aos produtores da Fête de L’Humanité, um grande evento parisiense dessa época em que ainda tinha comunismo e jornal partidário vendia muitos milhares de exemplares. Na época, Naná montara uma banda com três tumbadores, tocadas por três percussionistas senegaleses. Ele solava o berimbau e fazia a voz entoando os pregões dos vendedores de vassoura, coco e leite da sua infância. Dessa fase de dureza, ainda sobrou uma fita inédita, gravada no estúdio de Don Cherry, trazida para o Brasil mas até hoje esquecida num fundo de gaveta no Rio.

“Vou procurar mas não sei se ainda tenho”, diz Zeca Linhares, que fez as fotos das capas do disco nunca lançado. Foi mais ou menos no mesmo periodo em que começou a parceria com Egberto Gismonti, um encontro de oito anos de duração e três discos de herança. Aconteceu meio por acaso: alguns músicos não conseguiram o passaporte brasileiro para viajar, a gravadora alemã – ECM – pressionava para começarem a gravar. “Vamos nós fazer”, propôs Naná. Deu no Dança das cabeças, com Gismonti no violão, piano e flauta, Naná na percussão, berimbau, voz e corpo. Pela primeira vez alguém fazia ritmo usando o som do próprio corpo, disseram os críticos franceses.

O sucesso lançou a carreira internacional dos dois. Naná voltou para os Estados Unidos e estourou. Ganhou oito Grammys, foi eleito várias vezes melhor percusionista do mundo pela então influente revista de música Down Beat. Tocou com todo mundo – Miles Davis, BB King, Jan Garbarek, Pat Matheny, David Byrne, Don Cherry – mas achava o pianista Abdullah Ibrahim, na época chamado de Dollar Brand, o mais elegante de todos.

“Foi um músico com trabalho globalizado, foi reconhecido em vida. Recebeu título de doutor honoris causa e foi eleito chefe do maracatu de Recife”, relembra Nelson Angelo, amigo desde que Milton Nascimento era chamado de Bituca e Naná chegou ao Rio.

Ao se reaproximar do Brasil, foi diretor artístico do festival de percussão Percpan – junto com Carlinhos Brown e Gilberto Gil –, gravou com Caetano, Marisa Monte, virou documentário. Voltou a trabalhar com as crianças. “Foi meu trabalho com os meninos num hospital na França que mudou meu equilíbrio e me fez ver tudo de maneira diferente, a partir deles eu passei a ver meu corpo”, disse em entrevista ao Globo.

Como sempre fazia, abriu o carnaval de Recife este ano, regendo 500 ritmistas de maracatu, no Marco Zero. Já estava doente, descobrira o câncer no pulmão em 2005, passou mal ao fazer um show em Salvador, foi internado em Recife e morreu hoje de manhã, aos 71 anos.

Os tambores estão silenciosos.

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