O soneto de Vinicius e Paulo Mendes Campos

Por dentro do acervo

15.10.13
Caricatura de Vinicius de Moraes por Nássara, sem data. (Acervo Paulo Mendes Campos / IMS)

Caricatura de Vinicius de Moraes por Nássara, sem data (Acervo Paulo Mendes Campos / IMS)

Foi na última semana de julho de 1945 que Paulo Mendes Campos, recém-chegado ao Rio de Janeiro, procurava se adaptar à vida na então capital do Brasil. Aportou mesmo na cidade em finalzinho de julho e foi inicialmente hóspede de Fernando Sabino e Helena, que moravam na avenida Nossa Senhora de Copacabana, perto do cinema Metro. Sempre que Paulo achava estar incomodando o casal, mudava-se para a casa de Vinicius e Tati, suas duas mães, dizia ele, habitantes do Leblon.

E assim ficou no mês de agosto daquele ano: entre os amigos, as chopadas, uiscadas e festas em torno de Pablo Neruda, que visitava o Rio entre o final de julho e o princípio do mês seguinte.

Tão logo conseguiu colaboração no Correio da Manhã e no Diário Carioca, mudou-se para o Hotel Mem de Sá, “hotel de meia estrela” no Centro do Rio, que não demoraria a trocar pela Pensão Mon Rêve, no Leme, pensão de “nome cafoníssimo”, até que acabou se encantando com um quarto exótico no décimo andar do edifício Miraí, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, pertíssimo de Fernando Sabino e do cinema Metro. Mudou-se para lá.

Foi na casa do vizinho e futuro autor de O encontro marcado que, numa noite de “descaramento etílico”, conta Paulo na crônica “Soneto a quatro mãos”, sugeriu a Vinicius escreverem, ali mesmo, um soneto. O autor do “Soneto de fidelidade” topou na hora e os dois puseram, literalmente, mãos à obra. O resultado não foi lá grande coisa – achava o poeta e cronista mineiro -, mas passou o soneto a limpo e o datou de 17 de agosto de 1945. Depois de mais de um ano, em 1o de dezembro de 1946, publicou-o no Correio da Manhã, e, como já se disse, contou as circunstâncias da composição em crônica.

Com tudo isso, Paulo teve o cuidado de guardar a folha, com as letras dele e de Vinicius, muito rascunhadas, certamente não só como evidência do zigue-zague do processo de criação, mas sobretudo pelo efeito do álcool. Examinando a caligrafia dos poetas vê-se que a divisão foi de fato meio a meio: Paulo fez os dois quartetos, e Vinicius os tercetos. O manuscrito, do arquivo Paulo Mendes Campos, prova ainda que eles eliminaram, da versão publicada, a primeira parte:

Meu coração é teu, minha alma é tua
Teu riso é nosso, mesmo céu e flores,
Os braços declamando para a lua
Dirão do meu cantar, quando tu fores.

A composição, ausente das primeiras edições do Livro de sonetos, de Vinicius, seria incluída numa seção de inéditos a partir da edição desse título publicada pela Companhia das Letras, em 1991, que contou com consultoria de Otto Lara Resende.

Bom guardador de papéis, Paulo Mendes Campos conservou também uma caricatura do parceiro feita por Nássara, que felizmente teve a coragem de abandonar o curso de belas-artes e seguir o conselho de um professor italiano que lhe disse para não deixar de caricaturar. Vinicius, representado de coroa e cetro, é homenageado neste ano em que se comemora seu centenário de nascimento.

Aqui, a versão final do soneto:

Soneto a quatro mãos

Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Aqui, o manuscrito (clique para ver em tela cheia):

Soneto a quatro mãos, de Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes, 12/8/1945. (Acervo Paulo Mendes Campos / IMS)

* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.

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