O tempo em câmera lenta

Correspondência

02.05.11

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Ri:
Me interessa, e muito, essa “preguiça” fora da gaiola. Dessa preguiça na natureza, ou a natureza da preguiça a espreguiçar-se na origem da coisa, do fazer, e a “duração” do pré-movimento pleno. Falo, também, do bicho que desde pequeno me intrigou (teria um furo ou uma depressão no costado?) e da sensação que emanava dele, do seu cheiro grosso e lentas garras, estranha a mim, menino dado a faniquitos, que vai chegando ao curto-circuito final do homem de hoje.
Lembrei, agora, de um curta de Godard no filme, se não me engano no nome, Os sete pecados capitais. Cada cineasta escolheu o seu pecado: Godard escolheu a preguiça, logo ele, o antipreguiçoso por excelência, pois não para quieto, sempre com um filme sendo feito ou por fazer na cabeça; nem toma banho, creio, porque não tem tempo para essas frescuras de ficar parado debaixo do chuveiro e por ser suíço-francês, nem se barbeia, pela mesma razão, desde mocinho. Acho o filme dele uma pequena obra-prima. Mas sou suspeito: sou Godard maníaco de 20 anos em diante quando vi O acossadopela primeira vez sem saber quem era aquele Jean-Luc. Saí do cinema Riviera, no posto 6, em 1962, depois de ver duas sessões seguidas (a única vez que fiz isso em minha vida), pois devido a sua montagem inovadora, através do jumpcut, técnica hoje banal que está em qualquer propaganda de 4 x 4, negro, blindado, de vidros escuros, guiado pelo Motorista Fantasma, com grande chance de ser um monstro, um quadrúpede calçado com coturnos, precisei, enfim, das duas sessões para “pegar”, mesmo que pouco, o filme. Meu espanto foi tal que pensei que o projetor estivesse com defeito, ou a minha percepção é que estaria defeituosa, já que o filme me parecia todo picado, piscado, espasmódico.

Como se vê sou suspeitíssimo, mas a voz dos suspeitos pode ter uma paixão pela sua verdade ou um intensivão interessante num mundo tantas vezes entorpecido, mesmerizado, na sua velocidade fakeou desinteressante, que não nos leva a lugar nenhum: “velozes e furiosos” por quê, para quê, para onde? Ou talvez nem seja a voz, mas os olhos, “antolhados” visando um único foco, ou corpo, para fixar uma nudez nova em folha, a que produz o “alumbramento”, que Bandeira tão bem anunciou em poema memorável.

Quem sabe falar sobre a preguiça no samba não vem a calhar para descobrir e fixar em você a preguiça e o seu tempo em câmara lenta, que é inerente a todos nós? Que ele é seu, que você, ao tomar posse dele pode, além de transformá-lo numa conferência, tê-la como matriz de novos poemas? Afinal, fora da grade dos dias por mais fechada que ela seja há os inevitáveis intervalos entre uma barra e outra. E depois que os pais morrem e os filhos crescem é até natural uma desaceleração dentro da própria ação, e que faz parte dela, originalmente. E que nós recuperamos quase sem saber, pois o tempo da “doação ilimitada a uma completa ingratidão”, como escrevia CDA, já passou.

Muitas vezes escrevi em andante, digamos assim. O que difere de você é que eu vou pedindo canetas emprestadas no caminho. Um dia saí com um recorte de jornal com o nome de um disco do Miles Davis, que ia comprar. O retrato dele, que ilustrava a matéria era grande e sua testa aparecia lisa. Quando cheguei em casa, depois de pedir a caneta do porteiro, do florista, do jornaleiro, do frentista, do bancário ela parecia ( como Alice disse), enrugada pelas muitas linhas que escrevi naquele espaço. Acho que você retém seu poema para um momento ideal, para depois, sim, como quem guarda o melhor bocado para o fim, para depois das coisas chatas, como um prêmio, uma delícia. O tempo que lhe parece faltar está aí, talvez, entre consultas e providências de toda ordem. Penso que você pode, isso sim, estar desperdiçando o seu tempo em vez de ganhá-lo, nesses interstícios. Opoema é a sua resignação. Escreva sobre ela, sob ela.Quem sabe você não poderia “postar” alguns poemas que você escreveu no “exílio” do Rio, ou das férias? Eles são a maior prova que os poetas não têm férias como as da Família Watson… Que eles escrevem, sempre, à revelia, em qualquer lugar. Até mesmo nos lugares mais impróprios, à primeira vista, como aqueles que formam a nossa rotina, urbana ou rural.

Aí vai um exemplo de um poema escrito em plena andança de um dia cheio de compromissos bancários, de INSS, de dentista, cólica brusca em plena rua etc. Foi escrito entre “as barras”, de permeio, e está no livro Números anônimos:

Escrevo de cabeça, andando a pé
não com a elegância
daqueles que, quando com skate
quase alados, ondulando
em equilíbrio, passam à margem
no intermezzo, na calçada da praia
acostumada à pressa dos carros
e à expectativa das ondas.
A poesia acaba com a vida, marca
montanha e mar ao mesmo tempo
e o que se salvou, agarrado
e ainda se segura, litorâneo.

E o que envelheceu Miles Davis e meu filho Carlos, em Numeral / Nominal:

10 ANOS

Flor masculina do meu bosque
seu cheiro começa a ser íngreme
árduo – de cabelo e músculo –
de dias ardidos de escalada.

Subsiste o primeiro suor da noite
inodoro porque em repouso
a pele lisa que a barba e a acne
ainda não contrariam, o ar de entrega

que se mantém embalsamado
pelo sono ou por algum sonho
de maldade, com mulher de celofane.
Mas a infância já se feriu, inevitável
ao entrar na casa de dois dígitos para sempre.

A dor de alterar-se, de altear-se
estala, e a inocência também é de sangue.
Uma e outra se quebram e reanimam-se:
têm o mesmo comportamento, prazo
bravio e breve, das ondas no mar.

Ao fim desse palavrório, onde entrou de tudo um pouco: preguiça bicho e sensação, Godard, Bandeira, Carlos Drummond, especulações vadias etc, só posso lhe dizer que eu vejo o suporte, a folha disponível para o poema, como uma espécie do primeiro ato de um movimento preguiçoso que se desenrola sem fim, da família e da gramatura da resma onde, segundo dizem, Kerouac escreveu On the road, pronta para uma escrita ininterrupta, desafiadora do tempo, virtualmente infinita (como a que se pode fazer agora no computador e no pequeno espaço pautado para envio de mensagens no celular), urgente, que não deve – nunca- ser adiada:

1.X.82, sexta, meia-
noite e meia, Rio, e tenho
todo tempo do mundo
para escrever isto
e ao mesmo tempo
nenhum.
Não há leitores à vista
ninguém
me pediu nada, não há
prelo esperando as letras
deste repórter de si mesmo
– urgente, à toa, atropelado –
que prepara uma edição extra
para ser lida (?) em 1985
já que na posteridade
só cabem os gritos
i. e., os gregos.

Com um beijo daqueles. Armando.